Bem sei que há quem
Bem sei que há quem não goste particularmente da cultura francesa ou francófona, sobretudo agora, que a vanguarda está tão declaramente no outro lado do Atlântico (e no seu "braço desarmado" , as ilhas que ficaram para trás...). É evidente a valia da investigação científica (em sentido amplo, note-se, ou seja, deixando uma larga referência para as ditas ciências humanas), e é clara a energia ainda em crescendo (será?...) das estratégias político-económicas traçadas nas terras dos gringos pela elite dirigente, de vez em quando a braços com pequenos detalhes (tipo Enron e a fiabilidade dos consultores e do auditing internacional) que fazem descambar as bolsas - a deles e as dos outros, hélas - it's a small world indeed, como bem diz o David Lodge, em contexto bem mais divertido.
Mas, sem recusar essa crista da onda, essa inegável (e invejável, pobres de nós, europeus do sul , nessa e noutras matérias!) afectação de recursos à investigação e ao conhecimento, convém tirar o mais possível de tudo o que está disponível.
Como bem diz alguém que tem excelentes hábitos omnívoros, exercidos com determinação e recorrência nos mais desvairados domínios da vida, convém, por princípio, querer tudo; depois se separa o trigo do joio (e há sempre trigo onde menos se espera, acrescenta AmAtA).
Leva-nos este intróito a dois caminhos diversos mas não divergentes: o primeiro, um cd ( Mélodies de Cécile Cheminade, 1857 - 1944) gravado pela Anne Sofie von Otter, perfeita na limpidez, cada vez mais segura: não o vi por cá, mas seguramente será arranjável ( proporciona 76 minutos de prazer, o que, convenhamos, é uma excelente razão para tentar). Bem sei que é um conjunto fortemente dirigido do ponto de vista temático (não será por acaso que tem o título genérico de Mots d'amour), mas aquela rapariga de Batignolles foi de facto muito interessante e escolheu uma vida especial. É curioso que o amor a motivasse tanto quando o seu modus vivendi foi, no mínimo, solitário ; viveu sempre só, chegando a dizer que o seu amor era a música e ela própria a sua freira, a sua vestal. Do convívio na casa paterna com Massenet, Gounod e Saint-Säens retirou ensinamentos que completaram a sua formação e lhe permitiram inspirar-se de forma renovada. Quem se lembra dela hoje? A Anna Sofie von Otter conseguiu iluminar, mesmo que só por breves momentes , a inevitável obscuridade. Ainda bem.
O outro caminho seria muito mais contestado, estou certa, por quem repudia a quase totalidade do que a ficção francesa nos tem oferecido , ao menos nos últimos trinta ou quarenta anos; mesmo assim, rebelde a espaços contra a magistral ditadura iluminada, parece-me bem enriquecedor o texto da Duras n'"O marinheiro de Gibraltar", editado pela Dom Quixote. Porquê? Por isto: "Encontrei-o no momento em que finalmente poderia ter acreditado , não que o esqueceria, mas que talvez pudesse um dia viver de algo mais do que a sua recordação. (...) O seu olhar continuava a ser o mesmo, sempre perturbado por pensamentos ocultos. Depois dele, todos os outros olhares me enfastiaram".
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Publicado em 13 de Maio de 2003