O outro lado IV
Não hei-de conseguir: por mais que tente,
por mais que me desprenda ou desaprenda
os ritos e os ritmos do corpo ou da alma,
hei-de lembrar-me dos teus olhos vagos
e hei-de supor que estavam procurando
dizer-me qualquer coisa. Apenas o silêncio
poderia falar como eles
nessa plena doçura de existir
na maior paz do mundo. E contudo, p'ra mim
cada palavra se conjuga sempre
com outras palavras, e assim por diante
até ao infinito, até formarem
por exemplo um poema como este
- inútil quer p'ra mim, quer p'ra ti
ou p'ra qualquer leitor que nele ainda
pretendesse encontrar alguns vestígios
dessa tão pobre e má sabedoria
à qual, já só por hábito literário,
gostamos de chamar o coração.
Fernando Pinto do Amaral
Publicado em 29 de Novembro de 2009