Gostava de escrever um dia sobre a ciência E a conquista do espaço Sobre religião e mitologias E mais ainda sobre os vinhos e a natureza Da alma dos vizinhos Sobre a luta diária de tantas mães sem filhos Sobre o primo que não arranja emprego Sobre os desgostos de amor da Eulália Sobre as esquinas onde se escondem os miúdos de todos Os bairros ou sobre todas as aldeias Umas sem escola e meninos Outras tantas com meninos sem escola Todas com padre ao domingo Dizem que vivo Gostava de escrever sobre os desafios Em todas as áreas domésticas do século XXI Sobre moda e política internacional E todas as questões internas e intestinas Sobre medicinas alternativas Sobre coisas sérias e brincadas Sobre o universo e tudo o que abarca Sobre o direito à greve Sobre rendições de pais e de filhos Sobre decisões mais ou menos acertadas Da hora zero à vinte e quatro Sobre a neutralidade que afecta E a indecisão que corrompe Sobre as mulheres de má vida Sobre os homens infelizes Sobre as certezas viris e sobre as virais Sobre a luz e a sombra nos olhos de um fotógrafo Sobre a virtude mais careca E o inacreditável penteado De sicrano que é um homem Um pouco desorganizado Mas percebe de selos como ninguém E há-de casar com a Eulália e terão ambos Alguns dias felizes e bem regados Para infelicidade dos filhos aos quais Se renderão nos primeiros anos de birra Isto enquanto o vizinho Que perdeu greve e sustento Não é chamado para nada Para logo a seguir, aí pelos seis dos meninos Lhes trocarem as esquinas Pela catequese ao domingo Com sistemática falta de cinema e passeios à aldeia Do pai que não tem escola E da mãe que escola tem Para que finalmente percebam que No poupar de todas as coisas Está o ganho Ficam os miúdos sem saber que há espaço Para outras conquistas E para reflexões matemáticas e filosóficas Que até poderiam ter O seu interesse Nomeadamente todas as matérias Ou pelo menos as mais relevantes Atrás mencionadas Pesa mais a almofada e a falta de viagem Da Senhora Dona Eulália Que não aprendeu com os desgostos Do seu marido despenteado E numismático E dos seus filhos pouco carismáticos Mas não sou poeta Nem tão pouco inteligente que não saiba Que muita da boa poesia nasce Da falta de poesia Sou porém razoável A elencar assuntos E esse é O meu eterno descanso Rui A