Partiu minha Senhora. Há muito já
que os sinais da cerimónia se alinhavam,
visíveis, sim, porém indecifráveis
pelos mortais.
Por exemplo, as magnólias recobriram
de púrpura os passeios. E na noite
passava às vezes a lição do júbilo
que há num solene adeus. Alguém talhava
novamente aquele mármore. A beleza
de um grande pensamento enchia as ruas.
Minha Senhora ainda se encontrava
na sua plena qualidade azul.
O seu olhar coincidia em tudo
com o olhar dos Aqueus.
Contrariamente àquilo que se pensou,
não deviam ao mar o tom das íris
mas ao fulgor precioso da palavra,
ao duro tracejado da palavra
através da montanha.
Esse relâmpago,
a escama da serpente reluzindo
sob o luar da Hélade.
Minha Senhora tinha esse segredo
preso dentro das mãos, um longo texto
que era um animal vivo, era um poema
com respiração.
Minha Senhora já esqueceu o número
das fontes que brotaram nas aldeias
por onda ela passou. Voava baixo
e achava tudo muito natural.
Falava-me, por vezes, dos abismos
fascinantes de Delfos. E eu temia
que ela não regressasse. Que perdesse,
como acontece frequentemente
aos muito sábios, a noção de casa.
Estava, porém, o tempo predisposto
para um grande final. E aportou
a Barca carregada de flores brancas,
tão cuidadosa quanto triunfal.
Houve uma alteração no nevoeiro
do rio, uma leveza da matéria,
um véu que proibia as aproximações
decerto não por arrogância.  Tudo
devia concentrar-se na tarefa.
Partiu minha Senhora. Nem deixou
que eu, como de costume, ajoelhasse
e lhe atasse as sandálias.  Ela própria,
inclinando-se, o fez. E ajeitou,
ao levantar-se, as pregas do vestido
a que o mimoso linho do Egipto
dava uma ondulação inimitável.
Partiu minha Senhora como Athena
Nikê, Athena Vitoriosa.
Ninguém ouviu sequer fechar-se a porta.

Hélia Correia