Tempo e Identidade(s) ou da
Tempo e Identidade(s)
ou da linha subtil que separa identidade e alteridade
"Chi sono io tu non saprai!"
Don Giovanni,Mozart - Lorenzo da Ponte, Atto Primo
A questão do mito deDon Giovanni é, sobretudo, a de um pacto contra o tempo, ou seja, a compra do prolongamento da tessitura da vida, não propriamente em extensão, em longevidade (ao contrário do mito de Fausto, por exemplo, igualmente caro ao ocidente, e de certa forma mais linear), mas antes a densificação do registo existencial, através da proliferação simultânea e paralela de vidas. Como? Negando a a entrega da entidade ao outro, como forma de garantia última. Só com uma identidade oculta poderá o herói (anti-herói, de um outro ponto de vista, claro) exercer a fuga para nova vida lateral, até ao limite.
Muito mais do que um womanizer, Don Giovanni é um homem que recusa a humana condição do tempo limitado, que o prolonga através das suas "vítimas" (porque o não são verdadeiramente - só há sedução com a cumplicidade do seduzido, mas isso "estraga" a leitura do mito, no seu sentido arquetípico). A energia vital que Don Giovanni vive em excesso também o conduz ao declínio brutal, porque a negociação lhe fica inacessível: não é porque não quer arrepender-se que vai para o Inferno, é porque não pode: arrepender-se é quebrar o pacto com as entidades que lhe revelaram a via percorrida, e o seu modus vivendi não permite reversibilidades - o passado é intocável, no sentido em que nem os deuses podem modificar o que já aconteceu, e o arrependimento é uma "manobra de diversão" que os verdadeiros pactos não permitem...
Por isso, a autêntica (e derradeira) vítima é ele próprio, gasto na atomização da sua vida em prol de uma miragem de poder - porque a luta contra o tempo, em qualquer das suas formas, é sempre uma luta pelo poder supremo, obtido pela derrota de Kronos, esse inimigo brutal do homem. Mais do que um predador, Don Giovanni é um perdedor - perde-se a si mesmo por uma ilusão. Ganham as forças que o levaram onde queriam - ao Inferno.
Para uma curiosa interpretação filosófica do mito, veja-se Umberto Curi in "Filosofia del Don Giovanni. Alle origini di um mito moderno", editado pela Mondadori.
E haverá tempo para outras coordenadas.
AmAtA
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Publicado em 16 de Maio de 2003