Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.
Jorge Luis Borges
Sozinho em casa procuro nos armários.
Encontro antigos mapas de estradas,
contratos que venceram, esferográficas
que não escreverão mais cartas, velhas calculadoras
sem pilhas, relógios que o tempo derrotou.
O passado aninha-se no fundo das gavetas
como um rato triste. Vazios, os vestidos pendem
como velhas personagens que nos interpretaram.
Mas de súbito encontro a tua lingerie,
da cor da noite, da areia; fina, com pequenos bordados.
Cuecas, soutiens e meias que desdobro
e que me fazem regressar ao brilhante, embora misterioso,
fundo de amor e sexo: é ele que, de facto,
dá vida às casas, como os faróis e as luzes
de barcos e cafés a um porto ignorado.
Joan Margarit, trad. Miguel Filipe Mochila
Eu não resistirei à tentação,
não quero que de mim possas perder-te,
que só na fonte fria da razão
renasça a minha sede de beber-te.
Eu não resistirei à tentação
de quanto adivinhei nesta amargura:
um sim que só assalta quem diz não,
um corpo que entrevi na selva escura.
Resistirei a te chamar paixão,
a te perder nos versos, nas palavras:
mas não resistirei à tentação
de te dizer que o céu é o que rasa
a luz que nos teus olhos eu perdi
e que na terra toda não mais vi.
Luís Filipe Castro Mendes
Não, a solidão não tem de ser melancólica e triste, de todo. Pode, pelo contrário, estar ligada a uma experiência de plenitude. Quando confrontados com a riqueza do mundo ficamos por vezes indefesos, apreendemos apenas fragmentos, restos. A mesma coisa acontece quando vemos um quadro num museu: temos de dar um passo atrás, para vermos o quadro inteiro. A solidão é exactamente esse passo atrás.
Adam Zagajewski
O mundo interior, reino absoluto da poesia, tem a característica de ser inexprimível. É como o ar, que atravessa correntes e tensões, que determina mudanças de temperatura e tempestades, mas cujo traço fundamental continua a ser a absoluta transparência. O que pode fazer então o mundo interior se, a despeito da sua inefabilidade, aspira a exprimir-se? Usa um estratagema. Finge interessar-se, e interessar-se muito, pela realidade externa.
Adam Zagajewski
Esta manhã que entra pela janela,
com o frio que sobrou da noite e o cinzento
que vai ficar para o dia, é fabricada com pedaços de tempo, restos
de cor, estilhaços de memória,
que vou colando na superfície branca
da alma.
Por vezes, um pássaro esquecido
do verão entra pela sala vazia, agita
o espaço abstracto com o seu voo
inquieto, acordando a música que
um tecto de nuvens sufoca - e
leva consigo a perfeição do instante
que as suas asas inventam.
Comparo o pássaro e a manhã,
sabendo que a tarde me irá cobrir
com a sua túnica
de sombra; e colo aos ombros
a luz que essa imagem me abre,
tão breve como um rosa
matinal que o outono
colhe no caule
do amor.
Nuno Júdice
A mania de escrever parece constituir um sintoma de uma época sobrecarregada. Desde quando escrevemos tanto senão desde que nos encontramos em apuros? Desde quando os romanos o fizeram senão depois da sua ruína? Além do mais, tal como o apuramento dos espíritos, não há uma moderação organizacional; esta azáfama ociosa nasce do facto de que cada um se entrega indolentemente ao ofício da sua função, percorrendo-o. A corrupção dos nossos dias faz-se do contributo individual de cada um de nós: uns insuflam-lhe a traição, outros a injustiça, a irrelegião, a tirania, a avareza, a crueldade, conforme sejam mais poderosos; os mais frágeis, entre os quais me encontro, inculcam-lhe a estupidez, a vaidade, a ociosidade.
Michel de Montaigne
Por medo da insónia adio o sono
nas noites em que com um golpe frio
a memória levanta a onda morta
do irrecuperável: o que adio?
Estou deitado num tempo muito extenso
entre a luz e o escuro, estou perdido
entre o imaginado e a verdade
de um mundo sem imagens: o que adio
não é o sono de que temo a falta
nem o sonho feroz nele contido
é a história do corpo percutindo
na fundura impiedosa do vazio
Gastão Cruz
Como no poema de Whitman um rapazito
aproximou-se e perguntou-me: O que é a erva?
Entre o seu olhar e o meu o ar doía.
À sombra de outras tardes eu falava-lhe
das abelhas e dos cardos rente à terra.
Eugénio de Andrade
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