¶ 22 de Outubro de 2024
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
¶ 22 de Outubro de 2024
lentamente ele desaba
encarquilhado tropeça de conjuntura em conjuntura
o bode expiatório outrora encantador
pode troçar dele se quiser
ele sorri mas não se afeta
não queimado mas feito em cinzas um desmaio
passageiro irá se erguer novamente
e tolo ajeitar as calças e a casaca
logo estará alto e forte entre os pilares
o mármore do seu queixo fustigado pelas sombras
o relho brincando com a bota
o olhar que tudo penetra fixo na lua ameaçadora
lentamente ele desaba e o povo aplaude
despropositadamente agigantado ele desaba
e se põe ao lado do covarde do ponto de descarga
não inabalado de liberdade como um pano de chão
Lucebert
¶ 21 de Outubro de 2024
proclamo uma bela revoluçãozinha
proclamo uma bela revoluçãozinha
não pertenço mais à terra
sou água novamente
trago a espuma das cristas sobre a cabeça
trago sombras fugidias na cabeça
no meu dorso dorme uma sereia
no meu dorso dorme o vento
o vento e a sereia cantam
a espuma das cristas murmura
caem as sombras fugidias
proclamo uma bela revoluçãozinha crepitante
e caio e murmuro e canto
Lucebert
¶ 20 de Outubro de 2024
poeticamente
quero dizer
águas simples iluminadas
que expressam
a extensão da vida toda
não fosse eu alguém
igual a tantos outros
mas fosse eu quem fui
o anjo de pedra ou líquido
o nascimento e a decomposição não me teriam tocado
a estrada do abandono à comunhão
a estrada pedras pedras bichos bichos aves aves
não estaria seria tão suja
quanto hoje se vê nos meus poemas
que são visões aleatórias daquela estrada
nesta era aquilo que sempre se chamou de
beleza o rosto da beleza se queimou
ela não mais consola os homens
consola as larvas os répteis os ratos
mas assusta a humanidade
e a move com o senso
de ser uma migalha de pão sobre as saias do universo
não mais apenas mau
o golpe fatal nos faz rebeldes ou humildes
mas também bom
o abraço nos deixa tateando desesperados
no espaço
e assim voltei-me para a língua
e toda a sua beleza
lá ouvi que ela nada tinha de mais humano
que os defeitos de fala da sombra
que aqueles do sol ensurdecedor
Lucebert
¶ 12 de Outubro de 2024
Decameron
Já tinha chegado o ano de 1348 da fecunda encarnação do filho de Deus, quando a cidade de Florença, nobre entre as mais famosas da Itália, foi vítima da mortal epidemia. Fosse a peste obra de influências astrais ou a consequência das nossas iniquidades e que Deus, na sua justa cólera, a tivesse precipitado sobre os homens como punição dos seus crimes, a verdade é que ela se havia declarado alguns anos antes nos países do Oriente, onde arrastara para a perda inúmeras vidas humanas.”
Giovanni Boccaccio, trad. de Urbano Tavares Rodrigues
¶ 8 de Outubro de 2024
Claro Enigma
¶ 6 de Outubro de 2024
A tatuagem como idioma
As tatuagens não são transitivas, não comunicam uma mensagem: reenviam para si mesmas, anulam todo o significado porque se esgotam na auto-referencialidade. Configuram assim um corpo barroco, tão exuberante na sua artificialidade que fica esvaziado de sentido: não é um corpo erótico, não é um corpo tecnicizado (isto é, um corpo, como o do cyborg, conformado às próteses, aos implantes, aos piercings, aos brandings, a toda a espécie de tecnologias próprias de uma condição pós-humana), é um “corpo utópico”, tal como Foucault o definiu: um corpo arrancado ao seu espaço próprio e projectado num outro espaço.
¶ 5 de Outubro de 2024
Sem ti tudo me enoja, e me aborrece
¶ 4 de Outubro de 2024