¶ 27 de Março de 2023
Nas laudas que aí ficam muito me esforcei,
senhores, por dar caça aos adjectivos
que tanto vos molestam.
Mas nem tudo correu bem.
Houve uns quantos que se barricaram
e ergueram cartazes e gritaram com ira
uma palavra de ordem:
– O sal da poesia somos nós!
Achei graça –
dizerem que são eles o sal da poesia,
quando nem sequer o colorau.
Mas, enfim, enterneceu-me
tanto arreganho, tanto apego
às tetas da musa –
e não tive coragem para os expulsar.
Espero que não pesem, senhores, demasiado
na melindrosa balança de vossas senhorias.
A. M. Pires Cabral
¶ 27 de Março de 2023

¶ 26 de Março de 2023
As folhas rebentam nas árvores
Como algo que quase se diz;
Os novos botões espreguiçam-se,
O verde é uma forma de mágoa.
A envelhecer? Não, também morrem.
O truque que as faz parecer tão novas
Está escrito no grão dos anéis.
Porém os castelos inquietos
Adensam e crescem com o Maio.
Dizem: “passou, morreu o ano –
Recomecem, recomecem…”
¶ 26 de Março de 2023
Que pena não ser eu um dos primeiros
homens a inventar as palavras,
para criar a verdade!
Encontrei-as já todas feitas
umas doces, outras amargas,
estas rudes, aquelas imperfeitas,
acasos de som
– mar de espuma de gaivotas e vagas.
Com este cheiro tão bom
a realidade.
José Gomes Ferreira
¶ 24 de Março de 2023

¶ 24 de Março de 2023
Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa. Foi então que deu pelo facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias. Por vezes as perguntas estúpidas são de extrema utilidade.
Mário-Henrique Leiria
¶ 23 de Março de 2023
Ainda bem
que não morri de todas as vezes que
quis morrer – que não saltei da ponte,
nem enchi os pulsos de sangue, nem
me deitei à linha, lá longe.
Ainda bem
que não atei a corda à viga do tecto, nem
comprei na farmácia, com receita fingida,
uma dose de sono eterno.
Ainda bem
que tive medo: das facas, das alturas, mas
sobretudo de não morrer completamente
e ficar para aí – ainda mais perdida do que
antes – a olhar sem ver.
Ainda bem
que o tecto foi sempre demasiado alto e
eu ridiculamente pequena para a morte.
Se tivesse morrido de uma dessas vezes,
não ouviria agora a tua voz a chamar-me,
enquanto escrevo este poema, que pode
não parecer – mas é – um poema de amor.
Maria do Rosário Pedreira
¶ 22 de Março de 2023

¶ 22 de Março de 2023
Somos seres olhados
Quando os nossos braços ensaiarem um gesto
fora do dia-a-dia ou não seguirem
a
marca deixada pelas rodas dos carros
ao longo da vereda marginada de choupos
na manhã inocente ou na complexa tarde
repetiremos para nós próprios
que somos seres olhados
E haverá nos gestos que nos representam
a unidade de uma nota de violoncelo
E onde quer que estejamos será sempre um terraço
a meia altura
com os ao longe por muito tempo estudados
perfis do monte mário ou de qualquer outro monte
o melhor sítio para saber qualquer coisa da vida
Ruy Belo
¶ 21 de Março de 2023
A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta
— Quem é?
— É a mãe morta
— São coisas passadas
— Não é ninguém
Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?
Manuel António Pina
¶ 20 de Março de 2023

¶ 18 de Março de 2023
Às vezes o gato fitava
com estranheza
o que de nós (um excesso)
se interpunha entre nós e o gato,
a nossa presença.
Manuel António Pina
¶ 15 de Março de 2023
O que foi perdido
ficou eternamente
sobre o coração como a sombra de outra pessoa.
Nunca sentiste a morte
no coração como uma grande sombra
que o Trabalho, a Empresa, dissipam?
O que está por baixo de ti, ó Família,
ó estúpida Paz, ó Razão, ó Cólera,
acorda agora com as sombras,
os perdidos sonhos latejam,
o olho das trevas fita
o que temo dizer.
Agora que os
olhos se fecharam
fico acordado toda a noite
diante de uma coisa imensa.
Os amigos partiram.
Fomos todos embora.
Quem ficou aqui e onde,
E fala de isto agora?
Manuel António Pina
¶ 14 de Março de 2023
