¶ 10 de Dezembro de 2023
Ninguém nos pode tirar nunca o que sabemos de cor.
George Steiner
¶ 8 de Dezembro de 2023
Caminhos uma vez mais escrevo sobre caminhos
A melhor forma de fazer amor
E o gato vermelho no telhado
Bombas de gasolina pequenos pinhais
No único parque de campismo de Évora
A maravilha dentro da tua boca
O diabo e o sol a sombra
Da nossa solidão nas estradas
E o gato vermelho no telhado
Roberto Bolaño
¶ 8 de Dezembro de 2023
Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos,
pois todos vão fazer seus fundamentos
só
no mesmo em que está seu próprio dano!
Na incerta vida estribam de um humano;
dão crédito a palavras que são ventos;
choram depois as horas e os momentos
que riram com mais gosto em todo o ano.
Não haja em aparências confianças;
entendei que o viver é de emprestado;
que o de que vive o mundo são mudanças.
Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
somente amando aquelas esperanças
que duram para sempre com o amado.
Luís Vaz de Camões
¶ 8 de Dezembro de 2023
O Inverno não dura sempre
Névoa da nossa desilusão
Desce à terra nuvem que vogas
Sobre a aridez da mentira
Mil metros acima do chão
Abre-te ao nosso desejo
Deixa florir tua água de mudança
Nesta cidade em que tudo está à venda
E se pisam os dedos do mais fraco
E a sua dor
Trago na ponta da língua a indignação
E na mala a tiracolo uma carta
Sem verdades seguras mas com esperança
Num outro Abril
Com plantas de luz
Para ficarem.
Urbano Tavares Rodrigues
¶ 6 de Dezembro de 2023
De encontro ao meu coração um ar que mata
E que sopra dos velhos lugares:
Que colinas azuis são aquelas que recordo,
Que
espirais, que quintas são aquelas além?
É a terra da felicidade perdida,
Vejo-a, pura, cintilar,
Aqueles felizes caminhos que outrora atravessei
E aonde não mais posso regressar.
¶ 5 de Dezembro de 2023
Palavra /névoa, palavra /névoa: era assim comigo.
E, todavia, o meu silêncio nunca foi completo —
Como uma cortina a levantar-se sobre uma paisagem,
às
vezes a névoa dissipava-se: hélas, o jogo acabava.
O jogo acabava e a palavra ficara
um pouco achatada pelos elementos,
achando-se agora a um tempo recuperada e inútil.
Eu alugava, na altura, uma casa de campo.
Os campos e as montanhas tinham ocupado o lugar dos prédios.
Os campos, as vacas, os ocasos sobre o prado húmido.
A noite e o dia diferenciados por chamamentos de aves em rotação,
os afadigados murmúrios e restolhos fundindo-se em
certa coisa parecida com o silêncio.
Sentava-me, passeava. Quando vinha a noite,
ia para dentro. Cozinhava para mim jantares singelos
à luz das velas.
Ao fim da tarde, quando podia escrevia no meu diário.
Lá muito ao longe ouvia badalos de vacas
cruzando o prado.
A noite calava-se a seu modo.
Pressentia as palavras desaparecidas
dormindo acompanhadas,
como fragmentos de uma biografia não assumida
[…]
Louise Glück, trad. Margarida Vale de Gato
¶ 3 de Dezembro de 2023
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares, já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se
ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente.
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
¶ 3 de Dezembro de 2023
Senhor dos Infernos, dos céus, de parte nenhuma,
não precisais de saber dos que precisam,
saber mais do que sabiam nossos pais.
Moisés tinha os dois, Moisés tinha os dois.
Sabeis muito bem o que houve depois.
Jorge de Sena.
¶ 2 de Dezembro de 2023
A noite vai alta e escura. A terra por debaixo da cidade emana um hausto fresco, os parques e os jardins abertos ao ar, húmidos como as narinas de um gato. Tudo está quieto, espesso sob a pelagem da noite sem estrelas, mas tão pouco velada. Ou velada lá tão alto que o que resulta é esta quietação da cidade numa treva, um escrínio. Não está frio. Pelas quatro da manhã fez um jorro de vento, um único. Uma pancada de ar marítimo que avançou sobre as ruas baixas e os espaços abertos, cidade acima. A roupa meio seca estalou nas cordas, enfunando corpos, as copas das árvores moveram-se. A maré ia vaza.
Maria Velho da Costa