Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

24 de Março de 2025

Simon Vouet



24 de Março de 2025

Passagem

Até que a chuva pare (entre muros) Até que o poema aconteça (p’ra lá do verbo) Há o lento preparar de uma nova estação Não está esgotada esta terra (apenas não sabe por onde crescer) Não está esgotado este sangue (em cada nova estação o meu sangue é debutante). Não está esgotada a memória (é de um novo mapa que preciso) Não está esgotado este tempo não está esgotado o passado (descubro também coisas que já vivi) Não me serve já aquela velha agenda de geometria descritiva (onde não encontro o ângulo que procuro) Não está esgotada esta terra Apenas prepara uma nova estação

Rui A.

Publicado em 31 de Janeiro de 2011

Adeus, Rui, querido Amigo


24 de Março de 2025

Os últimos dias de Sakamoto

Fascina-me a noção de um som perpétuo. Um som que não se dissipe com o tempo. Suponho que, em termos literários, seria como uma metáfora para a eternidade.

Ryuichi Sakamoto


21 de Março de 2025

Voltar para casa

Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
E seguir o rasto das árvores no chão,
Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos
E as mãos nos bolsos como um apontamento antigo?
Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um,
E súbita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca,
Pronta a saltar e a arder todo o corpo?
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa,
Cabisbaixa?

Manuel Resende


20 de Março de 2025

Giorgio Vasari



20 de Março de 2025

O salvavidas

Não é inútil amarmo-nos,
finalmente.
Tal como amestrar serpentes, exige de nós
técnica refinada e a lata
de actuar frente ao mundo de tanga
− nervos de aço.
Mas amar é também um ofício
saudável: a sua liturgia apazigua
o ócio que aliena – como Catulo sabia –
e perdeu as cidades mais felizes.
Sob a corda bamba dispõe – não peças
uma rede, pois tal não é possível – outra corda,
igual de frouxa, mas a última
tão inútil às vezes,
sob a qual mais nada resta.
E entreabre
janelas que te descomprimam a cólera
e mostrarão à tua noite
outras diferentes, e assim
possa o amor salvar-nos no fim do dia
do pior perigo que se conhece:
sermos apenas – e nada mais – nós próprios.
Por isso
agora que está tudo dito e feito e tenho
um coio no país da blasfémia,
agora que esta dor de emprenhar palavras
com a própria dor
me transferiu para lá dos limiares
do medo,
preciso do teu amor como analgésico;
vem sedar-me com os teus beijos de morfina,
põe os teus braços à volta da minha cintura,
ó minha tábua de salvação, não deixes que me afunde
no letal prumo da tristeza;
anda, traja-me de novo com a esperança –
mal me lembrava desta palavra –
ainda que me fique a fatiota tão grande como a uma criança
a camisa do pai;
vem administrar-me o esquecimento e o dom da inconsciência;
e proteger-me de mim – o meu pior e mais tenaz inimigo –
dar-me abrigo,
embora seja uma mentira –
porque tudo é mentira, mas
sabes torná-la piedosa –
e tapares-me os olhos
para me murmurares já passou, já passou, já passou
– mesmo que nada se passe, porque nada acontece –,
já passou,
passou,
já passou
já passou.
E se nada nos livra da morte,
ao menos que o amor nos salve da vida.

Javier Velaza, trad. António Cabrita



20 de Março de 2025

Equinócio da primavera

Entende-se por equinócio da primavera o momento em que o Sol cruza o plano do equador celeste (a linha do equador terrestre projetada na esfera celeste). Esse evento marca o início da primavera. Em 2025, o equinócio da primavera ocorre no dia 20 de março de 2025 às 9h01.


15 de Março de 2025

Agnolo Bronzino



6 de Março de 2025

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. Tínhamos tudo diante de nós, não havia nada antes de nós. Todos íamos direto para o céu, todos íamos direto para o outro lado.



5 de Março de 2025

Identidade

Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

Miguel Torga


2 de Março de 2025

Se o que perguntas

Se o que perguntas é
“vês fantasmas?” 
a resposta é “não”
a resposta é 
“faço uso das formas poéticas da fala 
daquela que se corresponde com a figura poética da vida, 
as aparições, posso situá-las na árvore e nas ribeiras 
isto implica que 
as minhas artérias devem contar com elas 
todos dos meus órgãos devem contar com elas 
dar-lhes um lugar” 
Se perguntas “vês fantasmas?” 
a resposta é “não”  
a resposta é “o idioma constrói em mim uma horta para defuntos 
todos os meus órgãos lhe cedem o lugar 
eles/elas são a memória um coração e a linguagem” 
O céu 
com todas as suas luminárias geométricas 
não é diferente da árvore que te aparece 
Estende a mão, agarra o norte 
A noite é outra com a terra 

Chus Pato, trad. João Paulo Esteves da Silva


2 de Março de 2025

Giorgio Vasari



1 de Março de 2025

do ínfimo

Não sei senão do ínfimo
e do murmúrio das pequenas coisas,
as que não chegam à palavra
como a sombra ou o vento
desenhando-se sob os álamos,
em quieta reverberação.
E nada sei, senão desse canto
Invisível, mais sonho que metáfora,
do tempo que é no fruto
ou do que sabe ser sol, sem alarde
do breve e da passagem.
E nada sei dessa grandiloquência
dos homens, das suas promessas
e dos gestos que traem o coração,
dessa palavra ou excesso que mata
a perfeição circular do instante.
Se é vida, sangue ou oiro,
nada sei, nada de nada
escondido que ele é
no ínfimo e na sombra. Oculto.

Maria João Cantinho


28 de Fevereiro de 2025

Eu tinha grandes naus

Os amantes esquecem. A Primavera volta.
A terra treme. E piam as aves em bando
vindas de Helgoland por detrás da serra.

Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? perderam a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

O teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
Tudo isto fará a delícia
e o espanto dos nossos filhos.

Lamentam-se de mais, acenam
com as suas dores particulares
a quem passa, que passa
por outras razões. Querem dedos suaves
na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, amantes em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta
e eles consertam-se: coisas
da sua mecânica misteriosa.
Mesmo a terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Caíram árvores, camponeses gritavam
enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
«Paciência», dizia eu, «não morrerei por isso.»
E esperava o sândalo e a canela.

Fernando Assis Pacheco