Pagar para ver (a
Pagar para ver
(a vida sem ensaio geral, ou as virtudes de Polemos)
Há muitos anos, quando procurava, ainda de modo algo ingénuo, tactear os contornos de novos e diferentes afectos, revestidos de aço e cheios de arestas cortantes, querendo evitar a dor e, ao mesmo tempo, desejando muito viver uma outra vida, ensinaram-me que a única forma de o fazer é pagando para ver. Não há almoços grátis, citava, em complemento, a mesma voz avisadora, quando a expressão não se tinha ainda tornado numa banalidade apreciada.
E essa verdade, revelada da forma mais crua, através da própria experiência por vezes desoladora, mostrou-me bem que, na vida, não temos oportunidade para ensaiar antes da estreia, e até mesmo o precioso método experimental da tentativa e erro não garante o pleno proveito dos dados assim adquiridos em qualquer outro momento subsequente. Viver um episódio permite-nos ficar a sabê-lo, tal como analisá-lo oferece um pensamento sobre o ocorrido, as suas causas e eventuais consequências, mas pouco mais.
Viver às vezes cansa por isso mesmo, porque os desgastes passados não são vacinas inibidoras de outros futuros; mas a desistência prévia só consegue garantir uma única vitória: a da derrota por falta de comparência.
Ana Roque
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Publicado em 30 de Junho de 2003