O susto (ou a parábola
O susto
(ou a parábola extemporânea)
A liberdade dos outros, em especial dos que eram dominados de modo eficaz e total(itário), mesmo uma simples busca de luz, ainda incipiente, tacteante, assusta os donos de escravos. Os libertos são um péssimo exemplo de como as coisas podem mudar e o seu controlo ser esvaziado como uma praia na baixa-mar. Mas os fugitivos, os rebeldes, esses são a verdadeira causa do susto. Os senhores não gostam de atitudes inovadoras, não permitem afirmações de gosto sem críticas severas a tal arrojo. Confundem sofrimento reunificador com proselitismo, libertação com traição, vontade de sobreviver com falta de integridade. Os donos de escravos precisam de se sentir seguros, e cada escravo que foge converte-se numa ameaça que pode aumentar como um incêndio louco. Os donos de escravos pensam ter tudo controlado, dizem eles que pela razão, à custa de manipulação, de critérios dúplices, de pequenos estratagemas que consideram direito seu; tentam aniquilar a força restante no sangue dos outros com o silêncio, o esvaziamento do amor tornado mera encenação dos corpos, e a privação, mais ou menos evidente, da mais simples consideração. Os donos de escravos não vêem mais do que o seu interesse, concreto e imediato se possível, ignoram a anima mundi e não querem que ninguém sob o seu domínio a pressinta.
Mas, estranha e paradoxalmente, os donos de escravos conseguem muitas vezes fazer-se amar por entre as tiras invisíveis do chicote que nunca abandonam. Porque há sempre escravos de si mesmos perdidos para a vida.
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Publicado em 19 de Outubro de 2003