Poema a condizer (ou o supremo gosto de ver o dia nascer, iluminar a serra distante, a sul, e incendiar a norte, em paixão irreprimível, os vidros de Lisboa) Arte poética Olhar o rio que é de tempo e água E recordar que o tempo é outro rio, Saber que nos perdemos como o rio E que os rostos passam como a água. Sentir que a vigília é outro sono Que sonha não sonhar e que a morte Que teme a nossa carne é essa morte De cada noite, que se chama sono. Ver no dia ou até no ano um símbolo Quer dos dias do homem quer dos anos, Converter a perseguição dos anos Numa música, um rumor e um símbolo, Ver na morte o sono, no ocaso Um triste ouro, assim é a poesia Que é imortal e pobre. A poesia Volta como a aurora e o ocaso Às vezes certas tardes uma cara Olha-nos do mais fundo dum espelho; A arte deve ser como esse espelho Que nos revela a nossa própria cara. Contam que Ulisses, farto de prodígios Chorou de amor ao divisar a Ítaca Verde e humilde. A arte é essa Ítaca De verde eternidade e não prodígios. Também é como o rio interminável Que passa e fica e é cristal dum mesmo Heraclito inconstante, que é o mesmo E é outro, como o rio interminável. Jorge Luis Borges, in Poemas Escolhidos, Trad. Ruy Belo, ed. Dom Quixote, 2003. --------