Narrativa(s) (ou da emergência da verdade) O cinema americano é uma fonte inesgotável de boas surpresas; se há (e há certamente) algum trash, quer em função de êxitos de bilheteira mais fáceis, quer porque a quantidade implica a alta probabilidade estatística de produção de um conjunto apreciável de obras menores, a verdade é que se consegue obter o prazer de ver filmes notáveis (a vários níveis) com razoável frequência. Nestes últimos dias, cheguei a duas obras completamente diferentes, e ambas exemplos acabados de bom cinema: "Mystic River", uma história perturbante, enovelada, de arestas cortantes, com uma realização soberba de Clint Eastwood (a fotografia e a música são fantásticas...) e um Sean Penn absolutamente notável (é sempre gratificante conhecer um grande actor desde os seus primórdios, vê-lo crescer e chegar ao patamar da excelência, como sucede neste caso - em última análise, sente-se uma vitória conjunta e partilhada entre actor e espectador); mas, fora do registo mainstream, "Roger Dodger", um filme de estreia realizado por Dylan Kidd, não surpreende menos, pelo rigoroso desempenho dos actores e, sobretudo, pela forma inteligente como a narrativa vai desmontando a certeza manipuladora de um Don Giovanni nova iorquino, perito em dizer às mulheres "verdades" destrutivas que confunde com sedução (o encanto maduro de Isabella Rossellini é de uma segurança magnífica). A exposição, pura e dura, da solidão do anti-herói e da sua impossibilidade de aceder a verdadeiros afectos que equilibrem o deserto apenas povoado por uma inteligência mordaz e impiedosa é um esplêndido momento de verdade. --------