Receita para o infortúnio (ou
Receita para o infortúnio
(ou da quase absoluta falibilidade em matéria de fé)
Confiar aos lábios de alguém a fabricação audível das palavras que nos faltam. Sofrer porque não chegam a ser. Esperar, mesmo desesperando mansamente, com lágrimas disfarçadas em vestidos negros, sorrisos encenados atrás de afectos vagos, forças esculpidas em laços de sangue. Sobreviver por dever, respirar por teimosia, beber outras palavras, as de poetas bem amados, (re)conhecidos no acaso da cidade ao anoitecer. Amotinar-se nos confins da alma, sob a aparência do mais ordeiro quotidiano.Equilibrar-se no arame dos dias de chuva, cegar ao sol nascente de imprevisíveis manhãs luminosas, alimentar o corpo de flores secas. Pagar para não ver.
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Publicado em 10 de Dezembro de 2003