Bach (para um dia lento, bem temperado, ou da invisível alquimia) O dia escorreu lentamente para a noite, em suaves tons de cinza, acidentalmente derrotados por finíssimas résteas de azul, bem sobre o cabo que separa a sul, no fim da serra apenas entrevista. A recolha de fugas e prelúdios de Bach* que formam o todo designado como "O cravo bem temperado" (a que os ingleses chamam simplesmente "The Forty-Eight") acompanhou o meu dia, interior e denso, vivido em casa, tocado por palavras diferentes, novas de tão antigas, ressuscitadas pela água, o ar, a terra e o fogo, reencontradas porque, em boa hora, assim aprouve aos deuses. Nota: Num dia qualquer da semana que findou, estive a almoçar com alguém especial (culto, inteligente, brilhante, doce, humilde até à exaustão e à injustiça auto-infligida), que é um dos meus mais queridos amigos; como de costume, falou-me de imensos textos belos, recitou um e outro verso com a naturalidade com que bebemos um copo de água, e deixou-me a bailar uma frase, de um poeta que já nem sei quem é, que não me largou mais, vindo a colocar-se, com a suavidade de uma pena e a certeza do fio de prumo, numa estranha tarde: "Hoy vas a entrar en mi passado".O verso é poderoso, como disse o Anjo. A realidade também se está a desenhar assim. *J. S. Bach (1685-1750), The well-tempered Clavier (1 e 2), Ton Koopman, ed. Erato,1990. --------