Palavras na bruma Veneza é uma cidade que conheço mal. Estive lá uma única vez, por pouco tempo, numa semana de Abril luminosa e fresca. Mas Veneza é quase sempre uma cidade que nos habita o imaginário desde antes, muito antes, de alguma vez lá termos ido, e mesmo para além (e, de certo modo, contra a evidência) desse conhecimento corpóreo. É uma cidade construída dentro de nós, feita de imagens filmadas, de romances e de poemas, de música barroca e de pintura avassaladora. Curiosamente, pode também ser um curto momento de inferno pessoal, ressonância de palavras maldosas ou simplesmente gélidas, o desamor pantenteado por divertimento cruel ou mera negligência, o imperdoável descuido da desconsideração. Mas, para além de toda a idealização pessoalíssima desta cidade diferente, Veneza é uma cidade de extremos, de multidões invasivas de turistas e de silêncios comidos pelo som cavo das águas, de madrugada, no nevoeiro da laguna. Apesar do sol em que a vi brilhar, a "minha" Veneza é sombria, cinza, húmida, um entrelaçar de águas escuras nunca vencidas pelo esforço inútil das pontes, salpicada pelo negro das gôndolas em luto perpétuo. A Veneza de Brodsky, entrevista em Marca de água, é mais próxima da que tenho dentro da memória do que a cidade que vi. É esse um dos milagres das palavras. --------