Virtudes ( ou a dupla
Virtudes
( ou a dupla face das coisas)
É precisa coragem para enfrentar a dureza da verdade, mas não tanta quanta a requerida para destruir a última réstea de esperança. Para viver de modo inteiro, vale a pena tentar encontrar-se tantas vezes quantas as necessárias, como um prisioneiro que procura evadir-se e não desiste, mesmo quando vê goradas inúmeras tentativas. A prisão do nosso descontentamento é um lugar muitas vezes inescapável na aparência, mas a saída existe sempre, escavada num trabalho árduo, paciente e demorado, cheio de reveses e de pequenos atrasos de anos. A aridez seca cada vez mais a almae deixa-a exangue e confusa. Mas persistência, determinação e constância só são inegáveis virtudes se e quando aplicadas à construção, ao crescimento interior, à busca serena da alegria confiante; se, ao contrário, significam apenas recorrência inglória de momentos de sofrimento previsível, anunciado, a continuação proclamada do vazio afectivo, ou a resignação cansada e desistente do que deseja por mera descrença cínica e amarga do amor (em que se acreditou como força anímica primordial), então serão vícios destrutivos, frutos de uma especial cobardia mascarada de resistência. Pior ainda, obrigam-nos a fazer da vida um mero ritual de sobrevivência mais ou menos bem sucedido.
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Publicado em 8 de Janeiro de 2004