Distância Mais do que uma
Distância
Mais do que uma simples diferença de conceitos, em função de intensidade ou durabilidade, é enorme a distância entre amor e paixão. Em conversa com alguém sobre o tema, foi-me referida uma entrevista de Cristina Silva (psicóloga e escritora, que lançou há pouco A mulher transparente, um texto de ficção sobre violência doméstica, esse monstro tantas vezes escondidos em lugares insuspeitos, devorador de vidas, esfacelador de corpos, torturador de almas que se esgotam entre medo e solidão), dada a Maria Teresa Horta e publicada no DN de 19 de Abril 04. Dizia a entrevistada que o seu novo livro não é sobre o amor, mas sim "uma história que passa pela paixão, e a paixão é sempre idealizadora. Ou seja, idealiza-se alguém para que corresponda às nossas necessidades.(...)". Ora a questão é, a meu ver, exactamente esta: a paixão pouco ou nada tem a ver com o outro, com o suposto objecto desse incêndio em feixe de palha seca - trata-se de um estado apenas ditado pelas carências do apaixonado, que elege um corpus (e a pessoa que o preenche, aliás, na sua essência, é muitas vezes, e continuará a ser, enquanto durar a exaltação, uma completa estranha); o confronto com o real permitirá uma de duas evoluções - o desgosto, a frustação, por o outro não ser quem se imaginou, ou, muito mais raramente, a construção de uma outra coisa bem diversa: o amor. Este, sim, é um percurso, uma resultante do tempo longo, da superação das diferenças entre o que se deseja e o que se consegue construir, o crescimento a dois, feito de aproximação em câmara lenta, de encontros sucessivos entre duas independências que têm códigos e referências próprios, passados distintos, modos de vida autónomos. O amor é muita vezes iniciado sem os arroubos da paixão, traçado a partir do encontro de corpos e de sentimentos, de ideias e de expectativas, num melting pot único e irrepetível. O amor não passa, aumenta com tempo, cresce e ganha solidez através do conhecimento do outro. Mesmo em condições diferentes das desejadas. Mesmo em situações adversas. De certa forma, os amores que se deixam de poder viver no quotidiano, porque a vida afasta muitas vezes mesmo quem se ama, não morrem nunca dentro de quem os viveu. Ficam como uma pequena luz no fundo da alma, uma memória especial, uma ternura solidária para com aquele ser com quem vivemos horas únicas. Os amores que são mais fortes do que as investidas do acaso, o movimento dos tempos, esses são, não muitas vezes os primeiros, mas necessariamente os últimos. São aqueles de que Virgílio falava: Amor omnia vincit.
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Publicado em 25 de Abril de 2004