Eleições As numerosas pessoas
Eleições
As numerosas pessoas que ontem não votaram não o fizeram certamente, na sua maioria, para assim exprimir um qualquer protesto contra o sistema político, ou contra os políticos (o que já lhes seria de alguma forma mais próximo). As pessoas não votaram porque, num país periférico, de tradição secular atlantista, a Europa é, ao fim de escassas duas décadas de integração, ainda uma realidade mediata. A adesão comunitária é um facto bem aceite - até o próprio euro substituiu o escudo sem dramas nem sequer dificuldades de maior; mas a distância entre as pessoas e um conjunto de instituições mais ou menos remotas não permitiu ainda o estabelecimento de uma clara relação de interesses que só nasce da identificação. E não se pense que é uma questão apenas inerente às classes menos informadas: mesmo aqueles que fazem parte de outro patamar de informação nutrem uma indiferença incompreensível pela "Europa" (e até, em casos extremos,um desconhecimento ou uma inadaptação confragedores, como foi patenteado pelo grupo de empresários que, há bem pouco tempo, foi pedir proteccionismo económico ao Presidente da República, numa manifestação patética de imaturidade face a um mercado aberto, onde à entrada vultuosa de fundos de coesão correspondeu a aceitação de uma livre concorrência alargada à quase totalidade do continente).
No fundo, ainda nos pensamos sós nesta estreita faixa de cá, embora os "fazedores de opinião" e os media abordem o tema com crescente recorrência e aprofundamento. E se a falta de lucidez é sempre de lamentar, esta sê-lo-á mais ainda, já que compõe uma atitude com custos crescentes numa organização em plena mutação, que se prepara para ter uma Constituição que foi elaborada de modo mais do que duvidoso, sem clara legitimidade constituinte, uma vez que os cidadãos europeus não foram chamados a formar a Convenção. Tudo está a mudar, e olhar para o lado não é seguramente a melhor maneira de acompanhar mudança. Participação precisa-se com urgência.
PS: o Partido Socialista tem uma capacidade de regeneração muito interessante, que lhe vem da maior sintonia com as preocupações das pessoas na sua vida quotidiana. Com erros notórios de liderança (o caso Paulo Pedroso e o modo como o partido foi arrastado para um assunto que lhe era alheio constituem porventura o melhor exemplo), Ferro Rodrigues conseguiu a recuperação notável que está à vista.
Por fim, uma nota de profunda admiração em relação à extrordinária dignidade patenteada, ao longo dos últimos dias, por Matilde Sousa Franco: a sua contenção doce e suave, a distinção da sua postura, fizeram dela um raro exemplo de atitude. Perder quem se ama de modo súbito deve ser o choque mais perturbador que se pode viver; saber aceitá-lo com resignação, coragem e noção de dever perante a memória de quem se perdeu é dar uma enorme lição de dignidade.
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Publicado em 14 de Junho de 2004