O curso de água As luas mudavam, as palavras nasciam-lhe das mãos e outras entravam-lhe nos olhos, alimentava-se dos sorrisos certos que eram seus, repetia gestos imemoriais com a serenidade de todos os dias, mas o que verdadeiramente lhe importava era aquele amor. Só ele lhe interessava na pele, só a ele se entregava contra ventos e marés, até contra o instinto de sobrevivência da alma. Só nele confiava para lhe apontar um caminho na areia, anos a fio passados à beira do deserto sempre a sofrer a revolta de querer o máximo, a inventar um rio subterrâneo que lhe matasse a sede. Pensava que, no dia em o outro soubesse reconhecer a existência do seu amor, dizendo-o, no dia em que lhe confiasse a verdade e não temesse ser frágil ou menor por isso, no dia em que trocasse a promiscuidade banal e vazia e a gloria mundi por uma certeza maior, nesse dia teria tudo o que queria. Mesmo que na aparência do quotidiano pouco ou nada mudasse, tudo seria conformado a uma luz diferente. Esquecia-se de que a transfiguração foi um milagre irrepetível. No dia em que lho lembraram, com a liturgia da palavra antes do gesto, deixou de lhe pedir a impossível entrega do que não tinha lá dentro. --------