Vontade Às vezes, numa qualquer
Vontade
Às vezes, numa qualquer manhã mais luminosa, rompe-nos a certeza do caos: o que sonhámos não é nem será nunca, o que temos baba-nos viscosamente os dias, afasta-nos da liberdade de esperar outros momentos, e até da suprema lucidez de, muito simplesmente, não esperar nada. O pior veneno é o equívoco diário, auto-infligido em doses tão destruidoras da alma como a heroína seria para o corpo. Acordar e pensar que o dia pode trazer as palavras que sonhámos é o condimento da alienação maior.
É certo que essa "coisa" pastosa que se cola a parte da nossa vida nunca é fácil de deixar para trás, sobretudo quando a fizemos depósito de expectativas ao longo de anos; além disso, quantas vezes não é também um alibi perfeito para não termos a coragem de enfrentar algo de verdadeiro e total, risco que assim evitamos com cuidado e indisponibilidade invisível?
Seja como for, é preciso vontade para abandonar a ruína interior. Muitas vezes, não basta.
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Publicado em 1 de Junho de 2004