Da impossibilidade Conheceram-se num palácio,
Da impossibilidade
Conheceram-se num palácio, entre Columbanos para que ninguém olhava, já o rescaldo de Abril arrefecia pouco a pouco. Olharam-se e passaram a viver dos mesmos poemas e romances, de filmes e viagens, de óperas e de Mahler, o título herdado a desenhar o nome, as ideias à esquerda, o dinheiro curto para tantos livros. Trocavam palavras noite fora, trocavam as linhas já emaranhadas das vidas ainda pouco gastas. Chamavam-lhes romeu e julieta porque eram jovens (ela era mesmo muito jovem, sem peso na memória, e por isso vivia das certezas irreais); admiravam o esplendor da paixão com que ela o aguardava todos os dias, invejavam o sorriso que ele tinha para lhe debruar os vestidos esvoaçantes. Eram belos, dizia-se, de uma beleza morena e amendoada, simétricos e rigorosos na inteligência, o riso a despontar ao mesmo tempo, ele sempre disposto a ensinar sem sobranceria, a curiosidade a apontar sempre mais longe. Ele sabia bem que o amor lhes era impossível, ela percebeu depressa. O tempo ainda não tinha sentido e ficaram juntos um instante breve no fio da navalha, até que a maré cheia da vida os separou, como era suposto e ambos esperavam sem tristeza nem revolta.
Ele recebeu cedo a visita da Morte, num dia frio de sol, alguns homens mais tarde, ainda as rosas não tinham voltado. Falou-lhe até partir, às vezes durante horas, às vezes em lágrimas, outras ainda com o sorriso ao fundo da garganta, a querer subir, já sem força, a voz a encher-se de medo do escuro inevitável.
Ela ficou perto até ao fim, limpou as poucas lágrimas, voltou. Viveu o que lhe competia, envelheceu sem pressa, aprendeu a ser só, sorriso pronto, palavras doces para uns, afiadas para outros. Conheceu amores menores como deuses inacabados, momentos imperfeitos, sonhos quase felizes. Levou muito tempo a aprender a não esperar impossíveis. Cortou os cabelos, que ele amava, muito lentamente, criou filhos homens, ouviu outros sons de que gostou, leu mais livros, escreveu alguns a que chamava as suas receitas para ensinar técnicas improváveis. Nunca se conformou com a ausência do Amor.
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Publicado em 7 de Julho de 2004