De outro tempo   Alguém que estava em viagem enviou-me dois postais. O gesto, cada vez mais arcaico, trouxe-me a imagem de uma cidade desconhecida - Alger - e de uma já vivida de muitas maneiras, em idades diversas e em situações variadíssimas - Paris. A primeira é património de uma grande amiga que lá viveu no exílio forçado pela ditadura de Salazar e Caetano. Amou aquela cidade, muito porque amava o homem com quem viveu a maior parte da vida e que acompanhou na oposição ao regime. Stella Piteira Santos tem olhos verdes que ainda brilham quando relembra Alger, la Blanche, os seus amigos árabes,  o trabalho no ministério dos negócios estrangeiros argelino, a rádio onde, com o marido e outros portugueses, falava para este país envolto em cinzento. Sem nunca lá ter estado, imagino-lhe as ruas, o branco, o calor. Paris? Tenho lá guardados momentos, flashes precisos, outros trivais, absolutamente indistintos. Mas há um certo instante, um riso numa noite cálida de Abril, entre um bar de jazz da rive gauche e a Madeleine; uma chuvada solitária, gélida, numa tarde em que o telefone não tocou (e devia); disco comprados a meio da noite, antes de mais um passeio até St. Michel, as ruas brilhando na espera do Natal; muitas horas em livrarias - de livros novos e brilhantes, de livros usados (o magnífico cheiro dos livros com vida...); um trajecto rápido entre gares para não perder a ligação com Londres, malas incómodas a travar os passos; um jantar, irrepetível em Lisboa, o retsina gelado. Paris tem instantes meus, como sanguineas à beira do Sena. Instantes com vida dentro. --------