De repente, a vida passava-lhe por cima num virote, como uma onda das marés indomáveis ao tempo dos equinócios, e faltava-lhe o ar, engolia as palavras certas, cuspia as erradas, tropeçava em lágrimas escusadas, enrolava-se nas vestes espúrias do medo sem razão. Às vezes, sentia a loucura trepar-lhe pelas pernas como um manso animal sedoso; chegava a enroscar-se-lhe ao pescoço, apertando devagar e sem esperança, roubando-lhe todo o ar do mundo num instante cruel. Deixava-se cair dentro de si, ouvia as vozes dos outros cada vez mais longe, cada vez mais sem sentido, cada vez menos ao alcance das mãos que estendia às cegas. Parecia-lhe desespero, mas não era, afinal. Era uma coisa que tinha dentro de si desde sempre, que dormia à sombra do amor e acordava, rebelde e intratável, mal adivinhava a sua falta. Era só perturbação.
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Da perturbação De repente, a
Da perturbação
Publicado em 24 de Setembro de 2004