Há um ano (com destinatário certo e impermeável, então e sempre)
Os dias virados ao contrário, em sentido perverso, contra a corrente da vida, como uma ampulheta desordenada e louca, desprezando a gravidade como coisa menor, pequena vaidade da matéria caprichosa. O silêncio a cortar-me os pulsos invisíveis com o gume de um sorriso incerto, itinerante e impessoal. Tantos passos dados para ir a lugar nenhum, para cruzar a soleira de uma porta fechada, fechada sempre, entreaberta para o corpo, a alma espantada a chicote para bem longe, as luzes deslizantes no rio à vista, mostradas com indiferença cortês a qualquer olhar na mesma varanda suspensa sobre o cenário de comédia sem arte. Não é isso que quero, disse brevemente, ao longo de uma década com sabor a século. Não é a magia doce e sem razão, solta da alma, a bordar o corpo. Não é o espelho de puro prazer nos olhos onde não há mais do que o gosto de estar vivo, a comprar mais vida ainda. Não é isso, não pode ser só isso. Quero os sentidos como flâmulas do amor, o amor como sentido da totalidade. O olhar em volta, iluminado, a lua em todas as fases na mesma noite única. Quero o voo das tuas palavras que não chegam nunca, que não me salvam nem me matam, que não são porque não as conheces sequer. Quero o lume aquático da desgraça esmagado a meus pés em glória. Quis-te.
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