Manhã de bruma
Passou a correr pelo sono breve e invadido de sonhos que pareciam ruas movimentadas e íngremes, uma cidade dentro da alma a povoar o espaço em volta, à procura da manhã, a estender-se para o dia, a procurar o verde nos olhos, a enredar-se nas mãos, no corpo, na simetria feroz e ávida,já desmanchada pela ausência de distância.
O que queria, mais do que perder-se na proximidade maior em que se anula o medo e se fere o tempo, negando-o? Queria o sabor da intensidade febril como se quer num romance, num poema, num filme, numa canção esplendorosa. Queria a vida como se quer na ficção intensa que nasce no fundo da realidade última dos dias que fomos, do dia que somos, sabendo que amanhã é o que sair da vontade, moldada pelas circunstâncias da álea, o capricho dos deuses à espreita sobre os passos certos dos homens. De que falamos quando falamos de amor, perguntava Carver, esse guardião de palavras que só as deixou sair, austeras e perigosas, para dentro da alma de quem as devora: fique a saber, no olimpo da memória, que falamos de rios que se juntam um dia antes do mar.
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