Do rigor
Rigoroso limiar
onde se vêm doer as nuvens
as gaivotas a caneta o telefone
a tirania da mão que sozinha continua sobre o papel
a estender o seu falso arco-íris.
Dói um quasi nada de tudo
doem-se todas as cidades
e o acidente do operário trucidado aos 25 anos.
No rigoroso limiar de tudo
não está apenas o que posso imaginar e o que conheço
mas também a vastidão infinita do que desconheço
e talvez nunca exista.
Oh este negro biombo contemporâneo
escondendo o peso e a medida
de geração em geração.
Oh sombra indelével
sobre que construí
a monumental idade do vácuo
e o seu sangue
que mancha as minhas mãos.
Vê como aterrada treme a paisagem
como se agita desastradamente esta ilusão de vida
como ela própria chama a si
a ilusão de um espelho
logo quebrado.
Oh como é escuro este sol que resta
o hálito da noite quando todos nós
à sombra de um muro velho a que nascessem malfazejas
as sombras
empalidecemos
num estudado contraluz.
O meu corpo já saíu de mim
e ele é o próprio ar que respiro
envenenado de espantos e remorsos.
Oh vem da árvore mais alta
preserva o azul da criança que passa
vem do mar
e põe na minha alma o teu moreno sorriso como um búzio
sem a dor de uma apenas recordação
Oh Mãe que tive
oh céu oh silêncio assassino
que iluminas como velas mortas
o meu rosto atónito de pavor de vergonha e de nojo
Como a morte canta ao fundo do corredor
como chove lá fora
como são hipócritas as palavras
que coragem me falta
para mais um dia.
Cruzeiro Seixas
Publicado em 13 de Fevereiro de 2005