Do olhar segundo
Há um momento, ainda sem se adivinhar sequer, a partir do qual a contagem do tempo passa a ser decrescente face a um ponto de viragem na vida; a inversão é desconhecida, ou inapreendida, e tudo aparenta a mais completa normalidade - a banalidade de uma primeira troca de cumprimentos de circunstância, antecedida pelo "instante zero", em que alguém sobe uma escada, outra pessoa atravessa um pequeno átrio, e os olhares se cruzam, sem perturbação, apenas vestindo a leve curiosidade de quem "ouviu falar". Depois, as primeiras conversas, simples, soltas, o interesse genuíno por temas comuns, a proximidade já voluntária a acender ligeiramente os sentidos. A cumplicidade, o reconhecimento imediato de uma presença marcante, o território comum que se quer densificar. As palavras claras deixadas como penhor desse desejo. E, horas passadas, o primeiro deslumbramento com o gesto generoso, a inteligência sensível, a consideração tornada acto. O tempo aberto ao olhar segundo.
Publicado em 14 de Março de 2005