(gentileza de Amélia Pais) É tarde, muito tarde da noite, trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente, voltei, ouço música, estou terrivelmente cansado. Exactamente terrivelmente com a sua banalidade é o que pode dar a medida do meu cansaço. Como estou cansado. De ter trabalhado muito, ter feito um grande esforço para depois interessar-me por outras pessoas quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas. E é tarde, devia ter-me deitado mais cedo, há muito que devera estar a dormir. Mas estou acordado com o meu cansaço e a ouvir música. Desfeito de cansaço, incapaz de pensar, incapaz de olhar, totalmente incapaz até de repousar à força de cansaço. Um cansaço terrível da vida, das pessoas, de mim, de tudo. E fumo cigarro após cigarro no desespero de estar tão cansado. E ouço música (por sinal a sonata para violino e piano de César Franck, e depois os Wesendonck Lieder) num puro cansaço de dissolver-me como Brunhilda ou como Isolda no que não aceitarei nunca, l' amor che muove il sole e l' altre stelle. Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado, e o outro que não ama, apenas queima e passa , e de cuja dissolução no espaço e no tempo em que vivo estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno. Eu estou cansado de não me dissolver continuamente em cada instante da vida, ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo. Qu' ai-je à faire de l' eternel? I live here. Non abbiamo confusion. E aqui é que morrerei danado de cansaço, como hoje estou tão terrivelmente cansado. Jorge de Sena