O rio não dialoga senão pela alma de quem o olha e embebeu a sua alma de olhares ribeirinhos no passado ou à flor do pensamento no futuro. É um país que fala dentro da fronte, olhando as naus, navios, barcos pesqueiros e o trilho das famintas aves pintoras de riscos negros, que perseguem o odor das redes cheias, as outrossim poéticas familiares gaivotas. É uma costa inteira de imagens de gaivotas dentro dos olhos. São bocas a pensar razões da vida, gargantas já caladas pela nascença e morte, quando entre si se vêem ou juntas olham o mar dos seus próprios dias. São cabeças velhas de labutar, entre dentes cerrados, as palavras mudas de um ofício no mar, antigas de silêncio, como se no esófago guardassem há muito a sabedoria de ir enfrentar o mar, transpor o mar, estar. Tal como um rio o mar só quer falar pela dor e alegria de alma com que o chama, há séculos na orla, um povo mudo, com as palavras presas, guturais sem fôlego, dentro de si, tão firmes no palato, articuladas na língua interior. E o mar é quieto ou bravo, e a alma tensa de uma paixão secreta, escondida atrás da boca, e sempre aberta, tal como as pálpebras diante desta água. Só a alma sabe falar com o mar, depois de chamar a si o Rio, no imo de cada um, recordações, de todos os que cumprem na linha da costa o seu destino. O de crianças, berços nascidos à beira-mar, aleitadas por água marinha bebida por rebanhos, alimentadas por frutos regados pela bruma. Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar, passam sem som na glote, para nós mesmos dizemos que o tempo já findou das caravelas outrora e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora. Também as vacinas, fenícias áfonas no poema que as canta, sabem as formas, pelo olhar, de serem mulheres com peixes à cabeça. E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra língua do mar, os nomes com que nos chamam para o seu modo de levar entre as casas o mar. Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo as de poetas, só as pancadas das palavras no encéfalo parecem ser voz do mar. É uma nação única de memórias do mar, que não responde senão em nós. Glórias, misérias, que guardámos por detrás do olhar lírico e da língua, a silabar dentro da boca. Nunca chamámos o mar nem ele nos chama mas está-nos no palato como estigma. Fiama Hasse Pais Brandão