I Deixa-me sentar numa nuvem a mais alta e dar pontapés na Lua que era como eu devia ter vivido a vida toda dar pontapés até sentir um tal cansaço nas pernas que elas pudessem voar mas não é possível que tenho tonturas e quando olho para baixo vejo sempre planícies muito brancas intermináveis povoadas por uma enorme quantidade de sombras dá-me um cão ou uma bola ou qualquer coisa que eu possa olhar dá-me os teus braços exaustivamente longos dá-me o sono que me pediste uma vez e que transformaste apenas para teu prazer nos nossos encontros e nos nossos dias perdidos e achados logo em seguida depois de terem passado por uma ponte feita por nós dois em qualquer sítio me serve encontrar o teu cabelo em qualquer lugar me bastam os teus olhos porque sentado numa nuvem na lua ou em qualquer precipício eu sei que as minhas pernas feitas pássaros voam para ti e as tonturas que a planície me dá são feitas por nós de propósito para irritar aqueles que não sabem subir e descer as montanhas geladas são feitas por nós para nunca nos esquecermos da beleza dum corpo cintilando fulgurantemente para nunca nos esquecermos do abraço que nos foi dado por um braço desconhecido nós sabemos tu e eu que depois de tudo apenas existem os nossos corpos rutilantes até se perderem no limite do olhar dá-me um cigarro mesmo que seja só um já me basta desde que seja dado por ti mas não me leves não me tires as tonturas que eu teria que eu terei sempre que penso cá de cima duma altura vertiginosa onde a própria águia nada mais é que um minúsculo objecto perdido onde a nuvem mais alta de todas se agasalha como um cão de caça leva-me a recordação apenas a recordação da vida martelada que em mim tem ficado como herança dada há mil e duzentos anos deixa que eu fique muito afastado silencioso e único no alto daquela nuvem que escolhi ainda antes de existir Mário-Henrique Leiria