Nada quer dizer nada
Abri uma carta antiga e reli-a.
Tinham perdido sentido as palavras
e as frases. Em que língua
me tinham falado? E eu entendera,
mas agora fora-se o entendimento.
Quem, se eu lesse em voz alta os sons
incompreensíveis, se voltaria para mim
e atentamente teria a paciência
de me elucidar? Reconquistaria desse modo
muitas das coisas que um dia possuíra
e depois perdera. Em que língua
exprimira a confusão e o caos
que me habitavam? Ou, mais
rigorosamente: com que língua
tentara vencer a insignificância
do mundo e da minha existência?
Nada quer dizer nada, as palavras
pesam como pedras, escondem-se nelas
o sentido e a paixão. Mas quem
pode ainda suportar a recordação
do tempo em que falar era uma parte
importante da existência, o indício
de que pertencíamos e nos reconheciam?
O meu corpo tomava consciência dos seus limites
e do que o distinguia das paredes, da mesa
e dos livros que me cercavam. O sono
começou a descer sobre mim, diminuiu
a minha capacidade de suportar a luz.
Confundia-me, enfim, com as quentes
trevas da noite? Quis manter
os olhos abertos e eles iam-se fechando.
Entendi então que uma vez mais chegara a hora
de renunciar. Na rua ouvi o jornal cair,
lançado de um carro para a porta de casa.
Levantei-me e fui buscá-lo. Podia
enfim terminar o dia, adiar a tentativa
de redução ao silêncio da minha vida.
Que ninguém dê pela minha presença,
que me esqueçam aqueles que um dia
prometi amar. Para que eu possa,
sem remorso, continuar a viver.
João Camilo
Publicado em 3 de Março de 2006