Abri uma carta antiga e reli-a. Tinham perdido sentido as palavras e as frases. Em que língua me tinham falado? E eu entendera, mas agora fora-se o entendimento. Quem, se eu lesse em voz alta os sons incompreensíveis, se voltaria para mim e atentamente teria a paciência de me elucidar? Reconquistaria desse modo muitas das coisas que um dia possuíra e depois perdera. Em que língua exprimira a confusão e o caos que me habitavam? Ou, mais rigorosamente: com que língua tentara vencer a insignificância do mundo e da minha existência? Nada quer dizer nada, as palavras pesam como pedras, escondem-se nelas o sentido e a paixão. Mas quem pode ainda suportar a recordação do tempo em que falar era uma parte importante da existência, o indício de que pertencíamos e nos reconheciam? O meu corpo tomava consciência dos seus limites e do que o distinguia das paredes, da mesa e dos livros que me cercavam. O sono começou a descer sobre mim, diminuiu a minha capacidade de suportar a luz. Confundia-me, enfim, com as quentes trevas da noite? Quis manter os olhos abertos e eles iam-se fechando. Entendi então que uma vez mais chegara a hora de renunciar. Na rua ouvi o jornal cair, lançado de um carro para a porta de casa. Levantei-me e fui buscá-lo. Podia enfim terminar o dia, adiar a tentativa de redução ao silêncio da minha vida. Que ninguém dê pela minha presença, que me esqueçam aqueles que um dia prometi amar. Para que eu possa, sem remorso, continuar a viver. João Camilo