Quem alguma vez amou
Evocar a amada é, para aquele que a recorda,
opor-se à desordem do mundo. Que a morte
nos surpreenda num episódio da intriga, não
enquanto nos bastidores mudamos de disfarce.
Há mulheres que começando a envelhecer
só sabem do amor o que Ihes deixou entrever
a adolescência. E refugiam-se na casa abandonada,
mal assomam à janela, nem nos dias de sol
vão passear a pé na areia da praia.
As cidades nos domingos são o túmulo
repugnante do tédio. Por vezes é como se,
atravessando as avenidas, fizéssemos parte do filme
a preto e branco em que se conta a monotonia
da paixão sem objecto. Sentada em casa,
a jovem adolescente enche folhas de papel
com as palavras do poema. Elas descem
do seu espírito como gotas de orvalho
muito antigas, translúcidas, habitadas
pela imaginação e pelos fantasmas do sonho.
Quem alguma vez amou? Só aqueles a quem
o amor, como uma maldição, foi recusado.
Para engrandecer a figura da amada
o homem senta-se à tarde na esplanada
de um café e sente a sua ausência. Passam
na rua homens e mulheres, automóveis.
Mas o seu espírito inebria-se na recordação
da desaparecida, daquela que já ninguém sabe
onde vive. Trazem-lhe um café e ele
mexe o açúcar na chávena indefinidamente.
Já não pensa em nada, a alma
diluiu-se-lhe na azáfama da avenida.
Depois desperta, bebe a bica
lentamente. Acende um cigarro e contempla
o infinito, sem se aperceber da fachada das casas
em que esbarra o olhar. Mais tarde levanta-se
e caminha ao acaso pelas ruas estreitas.
Quem, como a amada, ser inexistente entre
os mais inexistentes, pode sobre a imaginação
desocupada exercer uma sedução tão intensa?
João Camilo
Publicado em 21 de Março de 2006