Evocar a amada é, para aquele que a recorda, opor-se à desordem do mundo. Que a morte nos surpreenda num episódio da intriga, não enquanto nos bastidores mudamos de disfarce. Há mulheres que começando a envelhecer só sabem do amor o que Ihes deixou entrever a adolescência. E refugiam-se na casa abandonada, mal assomam à janela, nem nos dias de sol vão passear a pé na areia da praia. As cidades nos domingos são o túmulo repugnante do tédio. Por vezes é como se, atravessando as avenidas, fizéssemos parte do filme a preto e branco em que se conta a monotonia da paixão sem objecto. Sentada em casa, a jovem adolescente enche folhas de papel com as palavras do poema. Elas descem do seu espírito como gotas de orvalho muito antigas, translúcidas, habitadas pela imaginação e pelos fantasmas do sonho. Quem alguma vez amou? Só aqueles a quem o amor, como uma maldição, foi recusado. Para engrandecer a figura da amada o homem senta-se à tarde na esplanada de um café e sente a sua ausência. Passam na rua homens e mulheres, automóveis. Mas o seu espírito inebria-se na recordação da desaparecida, daquela que já ninguém sabe onde vive. Trazem-lhe um café e ele mexe o açúcar na chávena indefinidamente. Já não pensa em nada, a alma diluiu-se-lhe na azáfama da avenida. Depois desperta, bebe a bica lentamente. Acende um cigarro e contempla o infinito, sem se aperceber da fachada das casas em que esbarra o olhar. Mais tarde levanta-se e caminha ao acaso pelas ruas estreitas. Quem, como a amada, ser inexistente entre os mais inexistentes, pode sobre a imaginação desocupada exercer uma sedução tão intensa? João Camilo