Quando partires, às cegas, pelas veias da cidade, encontrarás quem de mim diga que estou vivo, ou o contrário. E quando o fizeres, ver-me-ás, sozinho, de rosto estampado nos quadros da parede, com as pálpebras cerradas sobre o meu peito. Escreverei cartas como se te desenhasse a cada palavra, o vento voará por mim sem que o impeça, e tocar-me-ei pela noite dentro, imaginando que estás por aqui. De hoje em diante, cerro a porta do quarto para que não entres - tenho a certeza de que te convidei, um dia, mas já não estou certo. Apagarei cigarros em frenesim, como páginas soltas de memória ou como lumes brandos nas copas das árvores - imaginei tudo isto enquanto dormias, nos teus sonhos em que o corpo era uma massa volúvel, insana e vermelha. Hoje já é manhã - a esta hora já acorda quem por mim não passa. Não durmo para que, ao chegar aonde tu estás, possa ser uma surpresa ou desilusão - como uma marca no peito, como um soluço de água quando a noite cai. Para isso estou hoje aqui, para que me entregues e para que morra. Pela penumbra, espalhei fotografias e luas luminescentes que olho e que gasto com a minha saliva, como o selo desta carta. Na minha pele ainda jaz o teu bafo quente de quando acordavas e de quando eu te via - às escuras, nua, pelo quarto herege e quente. De dentro dos lençóis emanava a voz que, aos nossos corpos, se assemelhava a uma religião, a uma quase-entrega-imaterial. E, por não te ter, me retiro para países onde o sol se ponha e onde os olhos não me ardam. Para que me possa solver no meio das multidões, onde alguém fala, onde ninguém me conhece - como uma palavra. E em línguas estranhas me defino no livro que escreves, dia após dia, onde te recordas, onde deixas latente quem eras ou quem serias se, por aqui, as giestas fossem calmas e se o teu corpo se enlevasse - à altura do meu peito surgem marcas, os teus dedos estão queimados e a pele nada mais é que um perfume mastigado onde não estás mais. Sérgio Xarepe