Não sei se me faço entender mas o seu encanto, indiscutível, sereno, luminoso, e mais não digo, era do género de nos pôr a pensar coisas absurdas a partir de uma simples observação. Sentados, por exemplo, a tomar cafés frente à arte popular, quando um ciclista de corrida passava a treinar dizia que devia dizer-se biciclista ou, na pior das hipóteses, cicleta. Parece humor mas era uma coisa muito séria. E profunda. Horas e horas a dissecar, por entre muitos toques ao de leve no corpo, horas sobre a fraude constante da linguagem, que nos afasta quando queríamos dizer tanta coisa, ser capazes de dizer tanta coisa. O melhor é não dizermos nada e sorrirmos de vez em quando como dois idiotas, ou falar cada um a sua língua, ou brincarmos os dois aos surdos-mudos. Que pobre a tua ambição de querer companhia à noite, alguém que te apague a luz e te agarre os cabelos, alguém que se dispa e baixe, finja que foge e regresse, alguém que saiba estalar os ossos das tuas mãos. Que bom aquecermos café, estarmos sempre aos abraços, que bom já te ter calado com os meus beijos intensos. Passeando, equipados, junto ao tejo, pedalando, pedalando até suar, a arder, vidrados na curva, duas rodas que se metiam uma na outra, tu sim, bicicleta, se aparecesses nos boletins de voto valia a pena sair de casa para ir votar em ti, para te eleger governo. Helder Moura Pereira