(gentileza de Amélia Pais) À medida que nós humanos criamos literatura a literatura cria-nos, forja-nos em bronze e coloca-nos num alto pedestal: faz de alguém um poeta. Olhando de baixo podes ver apenas o nobre perfil, camisa aberta (bronze), e o olhar fixo nos bosques longínquos e no despejo. Eu estive lá: é um lugar execrável para se estar por dias e noites, no calor e no frio, fingindo que a tua face e corpo não se importam um pouco com os admiradores e os invejosos fitando-te e com os pássaros de Deus que cagam na tua cabeça. Tenho sido um poeta, sei mais sobre mim do que aquelas pessoas que entendiam apenas os poemas da minha juventude – Ó morte pura como uma primavera, terra onde todos nos encontraremos – e em cuja imaginação eu me estava tornando num Poeta, um Jaan-num-pedestal. Na realidade, eu quebrei todos os dez mandamentos, muitas leis escritas e por escrever, regras de gramática e regras de poética. Gosto mais de sexo do que ética e estética gosto mais de mulheres do que altos ideais gosto mais de crianças do que de mulheres e a minha própria pele é-me mais cara do que nação ou cultura. Sou quase uma média estatística, um cometa entre cometas, um num extenso catálogo; um daqueles que à medida que se aproximam do sol podem estender a sua cauda, consistindo sobretudo de pó, apenas uma vez antes de desaparecerem no espaço vazio, levando consigo muita energia gasta. Jaan Kaplinski, tradução de António Dinis Lopes.