Poiesis
(gentileza de Amélia Pais)
À medida que nós humanos criamos literatura
a literatura cria-nos, forja-nos em bronze
e coloca-nos num alto pedestal: faz de alguém um poeta.
Olhando de baixo podes ver
apenas o nobre perfil, camisa aberta (bronze),
e o olhar fixo nos bosques longínquos e no despejo.
Eu estive lá: é um lugar execrável para se estar
por dias e noites, no calor e no frio,
fingindo que a tua face e corpo não se importam um pouco
com os admiradores e os invejosos fitando-te
e com os pássaros de Deus que cagam na tua cabeça.
Tenho sido um poeta, sei
mais sobre mim do que aquelas pessoas
que entendiam apenas os poemas da minha juventude
– Ó morte pura como uma primavera,
terra onde todos nos encontraremos –
e em cuja imaginação eu me estava tornando
num Poeta, um Jaan-num-pedestal.
Na realidade, eu quebrei todos os dez mandamentos,
muitas leis escritas e por escrever,
regras de gramática e regras de poética.
Gosto mais de sexo do que ética e estética
gosto mais de mulheres do que altos ideais
gosto mais de crianças do que de mulheres
e a minha própria pele é-me mais cara do que nação ou cultura.
Sou quase uma média estatística,
um cometa entre cometas, um num extenso catálogo;
um daqueles que à medida que se aproximam do sol
podem estender a sua cauda, consistindo sobretudo de pó,
apenas uma vez antes de desaparecerem no espaço vazio,
levando consigo muita energia gasta.
Jaan Kaplinski, tradução de António Dinis Lopes.
Publicado em 28 de Novembro de 2006