"Todas as provações que tiveste de enfrentar desde que eu me fui embora do Japão foram dolorosas e amargas. Mas, como tu própria disseste, a pouco e pouco foste-te aproximando da pessoa que devias ser. O pior já passou, e não voltará mais. Coisas dessas não se repetem. Sei que não é fácil, mas, com o passar do tempo, acabarás por esquecer. A verdade é que um ser humano não consegue viver sem o seu verdadeiro eu.É como a terra que pisamos. Sem um terreno firme, não podemos construir nada em cima. Há uma coisa, no entanto, que deves ter sempre em mente, que o teu corpo foi ultrajado por aquele homem. Tal nunca devia ter acontecido. Podias ter-te perdido para sempre e ficar condenada a vaguear eternamente pelo nada mais absoluto. Por um feliz acaso, acontece que naquele momento aquele não era o teu verdadeiro ser, o que provocou o efeito contrário. Em vez de te perder, libertou-te do teu eu transitório. Tiveste uma sorte espantosa. O que não impede que a mancha permaneça dentro de ti e que mais tarde ou mais cedo, dê lá por onde der, tenhas de te ver livre dela. Isso é uma coisa que eu não posso fazer por ti. Deves ser tu a descobrir a maneira concreta de o fazer, e a pô-la em prática." Haruki Murakami, in Crónica do Pássaro de Corda, trad. Maria João Lourenço, ed. casa das letras.