As primeiras coisas
(gentileza de Amélia Pais)
As primeiras coisas eram verdes ou azuis, com água pela cintura;
duras esmeraldas umas, outras animais, vibrantes
quando lhes toca a luz; o mais das vezes encostados
à parede do estábulo, com grandes olhos húmidos
e um precipício ao fundo (e as nuvens são o seu bafo).
E no entanto, visto à distância exacta, tudo se transforma:
o cenário do mundo é só um infinito espaço
cheio de coisa nenhuma, e a luz o puro efeito
de dois deuses menores que marcam o compasso.
É certo que, na chuva, o teu corpo anuncia
com seu distante olhar, um prazer que não cabe
na estreiteza da fábula; um céu, não duvidemos,
acolhe o terno gesto que não foi.
Já na parede a meio branca traço, a contragosto,
o tempo mal passado que apodrece; e ruminante encosto
ao tampo da água o bico ou pincel fosco
onde surgira, de repente, nada.
Os portões oscilam, e a erva adianta, se nos aproximamos.
Claramente vejo como te divides
num infinito número simultâneo de mundos.
As palavras celebram, mudas, a água na paisagem,
verde ou azul, conforme desejaste.
Avanço imóvel, descalço sobre a erva,
e quando fecho os olhos invade-me a luz por dentro
compacta, completa, como as coisas primeiras.
António Franco Alexandre
Publicado em 18 de Maio de 2007