Comecemos pela declaração de interesses, fundamento legítimo de um direito à indignação: nasci em Almada, tenho aqui vivido toda a minha vida (com uma breve interrupção de escassos dois anos em Lisboa). Do lado materno, há mesmo uma linha inquebrada de ascendentes que aqui nasceram, viveram e morreram desde os tempos mais imemoriais que os registos permitem. Tenho experimentado, ao longo das épocas que sucederam a revolução de Abril, por vagas sucessivas, diversas formas de sobranceria social pequeno-burguesa no olhar com que são vistas (serão?) as pessoas desta margem. Muito jovem ainda, no início dos tempos de Faculdade, frequentei a casa de uns tios do actual presidente do Tribunal de Contas (onde ele, aliás, então se distinguia pelo silêncio bem comportado), que expressavam o seu espanto por uma "menina que tocava piano e falava mais algumas línguas para além do requisito elementar do Francês" poder ser de Almada, esse antro do PREC. Só ficaram mais descansados porque, enfim, havia sólidos industriais de cortiça em antecedente próximo. Bem mais tarde, e durante uma década que, ela sim, foi um autêntico deserto no plano emocional, suportei graçolas pseudo-ignorantes, soberbas e preconceituadas por parte de um "intelectual de referência" sobre a margem sul, cujo momento maior consistia na falsa confusão entre Almada e Fernão Ferro - quando alguém que estuda com tanto rigor o comunismo deveria ter ao menos umas luzes de geografia... Mas estas eram situações pessoais, demonstrativas do carácter dos outros e da minha incapacidade de escolha de companhias que tivessem algum préstimo humano. Agora que um ministro de um governo que beneficiou de tantos votos de eleitores do "deserto" da margem sul se atreva a insultar a região e os seus habitantes ultrapassa esse âmbito privado e assume proporções de escândalo. Ou então é apenas a reprodução presente, na esfera pública, do meu desacerto passado de escolhas na esfera privada.