O corpo tem abóbadas onde soam os sentidos, se tocados de leve, ecoando longamente como memórias de outra vida em frios desertos ou praias de lama. O passado não está ainda preparado para nós, para não falar do futuro; é certo que temos um corpo, mas é um corpo inerte, feito mais de coisas como esperança e desejo do que de carne, sangue, cabelo, e desabitado de línguas e de astros e de noites escuras, e nenhuma beleza o tortura mas a morte, a dor e a certeza de que não está aqui nem tem para onde ir. Lemos de mais e escrevemos de mais, e afastámo-nos de mais – pois o preço era muito alto para o que podíamos pagar – da alegria das línguas. Ficaram estreitas passagens entre frio e calor e entre certo e errado por onde entramos como num quarto de pensão com um nome suposto; e quanto a tragédia, e mesmo quanto a drama moral, foi o melhor que conseguimos. A beleza do corpo amado é (agora sabemo-lo) lixo orgânico. O mármore que pudemos foi o das casas de banho e o dos balcões dos bancos, e grandes gestos nem nos romances, quanto mais nos versos! E do amor melhor é nem falar porque as línguas tornaram-se objecto de estudo médico e nenhuma palavra é já suficientemente secreta. Corpo, corpo, porque me abandonaste? “Tomai, comei”, pois sim, mas quando a química não chega para adormecermos, a que divindades havemos de nos acolher senão àquelas últimas do passado soterradas sob tanta chuva ácida e tanta investigação histórica, tanta psicologia e tanta antropologia? A memória, sem o corpo, não é ascensão nem recomeço, e, sem ela, o corpo é incapaz de nudez e de amor. Agora podemos calar-nos sem temer o silêncio nem a culpa porque já não há tais palavras. Manuel António Pina