Na penumbra da pequena sala talvez o milagre fosse um gato preto que miasse ou uma mulher loura que cantasse uns blues vagamente sinceros e se decidisse depois por um streap-tease de músculos hermafroditas. Mas tudo parece de cartão. Ver um filme às duas em ponto da tarde é como entrar num drama de papéis higiénicos para doentes do siso. Quem pode habitar este pulmão sem ar e ouvir saltar a tosse como rãs da secura para o veneno do mundo em celulóide? Não sentimos sequer uma perna avançar sonâmbula, dormente pelas agulhas do desejo ou o olhar aceso no escuro dum rosto que o desespero transforma numa visão celeste, quase inebriada. É o tempo do limbo das almas solitárias, sentadas, em principio de tarde de má vida, o tempo dos animais quietos, subterrâneos, à espera. Depois virá correndo, veloz, essa inocente droga que te leva a sonhar com um suicídio discreto, de veludo puído, descoberto duas horas depois ao reacender das luzes, pelos outros quatro ou cinco que continuam vivos como tu. Armando Silva Carvalho