A verdade é que também as urtigas me aborrecem. Esta doçura dos pássaros, a silvestre quietude da tarde atravessada pelo balido das ovelhas, grandes imitadoras de Edith Piaf, tudo isso não chega a ser tão daninho como a luz de um semáforo vermelho, mas um pouco de sangue na biqueira do sapato faz-me falta. Faz-me falta praguejar, ter um lago de cimento onde cuspir, obstáculos de fogo, fantasias, a metralha dos calinos. Não me sinto nada bem com a doçura, com a paz dos ermitérios, de onde Deus se retirou há quinze anos. Esta resignação das árvores, dos faunos, das silvanas, da restante bicharada típica dos lugares onde sofrer é natural como estar só, a conclusão é que não sei caminhar sem sapatos que me apertem. As sandálias do pescador, as botas do alpinista, não me levam a lado nenhum. Detesto confessá-lo, mas eu sou da cidade até à raiz do terror. Não consigo viver sem o saco de areia onde exercito o excessivo golpe da exasperação. Sem esse esbracejar a minha seiva coagula, torna-se pastosa, sonolenta, felizita como um rio de meandros preguiçosos, lamacentos, imprestáveis - de que me serve fingir o sossego a que não chego, brincar às Arcádias em que não acredito? Está decidido, prefiro sofrer. Amanhã de manhã regresso ao abismo. José Manuel Silva