(a Ruy Belo) Este homem procura as cores mais secas do nosso entendimento; vai connosco até à rua; responde-nos um cigarro primeiro, uma construção na areia, depois um ferro a espetar nas dunas e no mar enquanto o mar houver e a paz durar; come connosco à nossa própria mesa; ama a nossa mulher e experimenta o odor da nossa casa aonde os nossos filhos lhe entram pelos joelhos, o cobrem de carícias, lhe atiram a satisfeitíssima bola de brincarmos aos adultos quando é tarde ou os dias apresentam um cariz de pouca chuva. Divide o nosso frango, a frugal fruta, as sobras do almoço e sai-nos portas dentro quando o pôr-do-sol, a solução do sol, o sol das terras de portugal e das noites de madrid dialoga connosco, connosco estabelece a nítida fronteira entre aeroportos, casas – oh as casas – e a mulher que, podendo ser a de um estivador, do camisola amarela, desse irreverente basquetebolista que por um grande azar não é das nossas relações, foi, é, será sempre a mulher encontrada e perdida na poeira, nas arcas, nas infâncias multicoloridas que parcimoniosamente nos excedem. Procura, sim, procura as cores do nosso entendimento; bebe do nosso vinho; vai à missa connosco; veste-nos a pele de lobos esfaimados nesta selva de ratos onde os ratos se confundem com navalhas, intelectuais empalhados, inquiridores por conta d'outrem (e própria), só para que o amor um pouco sobreviva, exíguo e tenso, ri às bandeiras despregadas como só um menino, como só alguém que sabe da poda pode rir enquanto os táxis, o choro, as dores de consciência – que afinal não há, embora os cais... – atravessam o meio-dia, desesperadamente. Ah, este homem procura as cores mais secas do nosso entendimento; limpa-se às nossas toalhas; chega ao extremo de utilizar a escova privada da nossa privadíssima higiene; rompe os nossos sapatos (meias inclusive); joga à pancada connosco, ao eixo; e rouba-nos a carteira como só quem sabe sorrir pode roubar-nos, pode assinar de cruz por nós, solucionar o problema da nossa talvez habitação sem prestígio nenhum, ao menos uma praia de consolação em que morrer com o mesmo à vontade, modéstia e alegria deste homem que procura, procura as cores mais secas do nosso entendimento. Amadeu Baptista