(gentileza de Amélia Pais) Apesar da ignorância da rota desses navios que descem o tejo, da mulher que nos subúrbios os vê passar tão rente à sua mágoa, da moça tímida espiando o mundo da janela que em breve o escuro virá selar, ficam bem os sinos esvoaçando sobre a tarde de inverno em que buscas a justa palavra e não vê deus a tua aflição: o que cala, o que finge, o que mente — agreste destino que te cabe, tingido pelo clarão da dúvida. Mas ficam bem, ficam bem as meretrizes de rápido volteio, as matronas alvoroçando-se para o chá, o aplicado médio funcionário calculando o produto interno bruto, o amoroso pagando diária corveia de soluços, os altos dignitários recebendo honras e tributos. Sobretudo fica bem a mulher gorda espremendo-se num ginásio desfeita em suor e penitência. Mas também ficam bem o contrafactor vigiado pela lei, o usurário de sebo nos fundilhos, o proxeneta de olhar felino e os desabrigados desta rua (embora sobre eles caia o duro gume do inverno, deles é o reino dos céus). Ficam bem os poetas pobres que padecem todo dia a fome da beleza, os críticos impotentes ficam muito bem, os pretos desta praça que são alegres e passam bem, o cívico que ganha o dia de olho no parquímetro fica bem apesar dos amáveis impropérios. Ficam ainda bem os canídeos que defecam nos passeios e as madames que os trazem pelas trelas sempre prontas a pregar civilidades a esses que falam alto e têm modos estrangeiros. Mas que fiquem bem as raparigas de cabeças ocas que têm como único tesouro a juventude para que não seja a lamentação o tributo dos vindouros dias. Só eu não fico bem, senhor meu, que aguardo toda a tarde pelo poema que não vem, embora navios subam o tejo aulindo através do nevoeiro. Mas tudo está bem quando é o deus quem assim o quer. José Luís Tavares