Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca, ou docemente lírica e sentimental, ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do “ça ira”, ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos, dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa, e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma de não ter tido plenamente a carne que a traiu, esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte, como exactamente a vida que os outros continuam vivendo ante os olhos que se fazem garganta e palavras para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham nesta sombra que se estende luminosa por dentro das multidões solitárias que teimam em resistir como melodias valsando suburbanas nas vielas do amor e do mundo. Quem tinha assim a morte na sua voz e na vida. quem como ela perdeu toda a alegria e toda a esperança é que pode cantar com esta ciência do desespero de ser-se um ser humano entre os humanos que o são tão pouco. Jorge de Sena