Na noite calada e quieta como um grande segredo, andando ao deus-dará nestas ruas desertas, saio lá do fundo do meu sonho e olho ao redor de mim. Cá fora há tudo o que não é do meu sonho: o frio, e os altos prédios fechados, e as ruas mortas como paisagem de cemitérios. E a claridade fugidia dos candeeiros cansados, como pálpebras que se vão fechar. E o torpor saindo de todas as coisas e pairando no ar, como um desmaio iminente... Só eu ainda tenho passos para andar e uma não sei que ternura para todos que estão, para lá das paredes adormecidos e descuidados à morte que espreita escondida no mistério da noite... Em que casa e andar estará dormindo aquela de quem não sei o nome nem a vida, mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo quando nos cruzamos esta manhã? Nesse momento, ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar, mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro — Hoje é um dia de glória! Mas tão estranho me pareceu aquele milagre entre dois desconhecidos, que nem voltei a cabeça para trás... Agora este desânimo sem nome de quem traiu um dia inteiro de vida e teima ir pela noite dentro à espera nem sabe de quê ... De tantas horas iguais estou farto! Mas ao fim e sempre a mesma esperança: "um dia virá..." E eu que tenho a vida desarrumada como se fosse um milionário bêbado, ergo-me e saio para a rua deslumbrado e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer. E vai a coisa tão certa como uma religião, quanto pressinto que me olham de todas as caras como se espiassem um louco... Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas? E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado... Ah, um dia, quando a morte chegar, hei de erguer para ela os meus olhos molhados, e hei de contar-lhe a indiferença do mundo e a amargura dos altos sonhos desfeitos... — assim como um menino fazendo queixas a sua mãe. Manuel da Fonseca