A tarde já está branca, e então os melros voam de novo com os seus estalidos. Gosto de vê-los, quase nunca falto, a qualquer hora quando penso em mim. Mas não me salta nunca cá de dentro um ser de forma alada, tracejante, ao gosto dos poetas competentes e das mais gentes tidas nesse gosto. Esta a surpresa repetida e calma da liberdade no voar dos melros. Que os melros são reais e são concretos na sua zoologia – sem poetas. Ainda que banal, não imagino que se reparta o coração num pássaro a saltitar disperso nas ramagens. É meu dizer de mim que sempre tive – mais homem que poeta, ambos vulgares, vida e saber sem mais comparações. Porque um poeta como eu, ingénuo, não tem ideias nem pesquisas únicas, é incapaz de conceber os pássaros, limita-se a dizer que existem pássaros quando o que vê são na verdade os pássaros. Assim banal, disfarço a velha imagem dos outros imitando um coração, fingida a fantasia que há nos pássaros. Agora com os melros, isso não! Com estes melros não, porque são meus, voam de novo à tarde com estalidos, levam no bico um cibo do quintal, e este quintal é meu – e destes melros. Gosto de vê-los, quase nunca falto, a qualquer hora quando penso em mim. Mais homem que poeta, ambos vulgares, o meu dizer dos melros já deixou de ser um sentimento, é crueldade. Passava bem sem eles no quintal, mas tenho medo de os deixar de ver. Quando será que um pássaro se alastra para existir à tarde – com surpresa? Agora tenho de pensar em mim. Aos melros tanto faz, quando eu faltar. Carlos Garcia de Castro