Sou um carpinteiro de cenários Dum ballet russo ou doutro qualquer. Guardo as ferramentas do ofício Pregos, dobradiças, apetrechos vários; Um ar canhestro de quem é sempre mandado E a certeza do acaso quando quer Que alguém nos tome pela mão numa aventura Inesperada só do outro lado dessa pobre alma ("Pobre alma" vem do russo). Ela ganha a certeza de que nada é por acaso Perdendo a certeza de que nada dura E alguma coisa fica do que era nada Desespero da impossível calma Esperança de que fique vício ou piedade Em pedacinhos fragmentários Pregos, dobradiças e a tinta escura ou viva Que o sol ausente do teatro não comeu. Cravo os pregos do amor por todo aquele armazém dos desperdícios Que nenhuma vassoura limpará do pó das glórias mortas. Fixo as dobradiças que me unirão pra sempre a tais memórias Experimentando com cuidado e sem saber a serventia dessas portas Que porão em cena novas glórias das ocasiões fatais Pra eu sofrer do alto da urdidura. Anos de acaso fizeram-me um perito A que recorrem os que não têm coragem De mostrarem que não se admiram a si próprios Senão quando todos aplaudem E se revoltam com a confiança dos maítres de ballet que falam duro. Mas, nos dias mornos, lhes é tudo indiferente. A estrela untando as sapatilhas na resina Olhou-me com os olhos a piscar, vermelhos. Cairia se a não agarrasse e no escuro lhe dissesse Porque atrasara o sexto fouetté do seu allegro. Em cena todos os desculparam porque era estrela Porque trinta e oito anos são uma idade perigosa E amanhã não sucederia o mesmo E há muitos anos não tinha amores a comentar e estava triste. Mas eu sabia que onde ela passara o tablado tem sulcos que o tempo Usou como fez para abrir as duas rugas Que a pobre alma tem, como parênteses, em volta da pequena boca Que floriu tantas Giselles e Odettes. Não me casei porque vivo demais neste teatro Que então já seria a minha casa que afinal não tenho. Todos me tomam como uma parte desta casa. E talvez sem o saberem me invejem Tantos que nunca tiveram uma casa Ou a que têm é apenas quanto dura A Companhia ou a ligação de acaso. As vezes é um grande sol de amor que a ilumina Sol de teatro como os velhos arcos voltaicos Choques e carvões sempre sujos que eu dantes ajudava a limpar. Eu encontrei a casa que é minha por não ser. Sabe-lo foi tudo o que encontrei. Aquela rapariga que iria longe E ao primeiro grand pas de deux classique Partiu um braço porque julgara já poder esquivar-se Aos desejos naturais do premier danseur Foi pena ter esquecido depressa demais o tempo em que podia Tomar comigo um café e achar-me um pouco filósofo. É tarde. Tudo isto é escuro e amanhã — Cedinho, é preciso que cá estejas... — Bem sei. já não preciso dormir muito. Guardo na caixa os pregos e as dobradiças. Ao menos hoje a grande estrela Aprendeu um segredo do palco. Possa ela não se vingar aconselhando aquela diagonal À pequena em que o diretor põe agora todas as esperanças Só lhe direi o que ela quiser. É tarde. É melhor ficar cá no teatro. A única luz dá sobre a caixa da resina. Basta-me apagá-la para adormecer. José Blanc de Portugal