Poema dos dons
(gentileza de Amélia Pais)
Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
esta declaração da maestria.
de Deus, que com magnífica ironia
deu-me a um só tempo os livros e a noite.
Da cidade de livros tornou donos
estes olhos sem luz, que só concedem
em ler entre as bibliotecas dos sonhos
insensatos parágrafos que cedem
as alvas a seu afã. Em vão o dia
prodiga-lhes seus livros infinitos,
árduos como os árduos manuscritos
que pereceram em Alexandria.
De fome e de sede (narra uma história grega)
morre um rei entre fontes e jardins;
eu fatigo sem rumo os confins
dessa alta e funda biblioteca cega.
Enciclopédias, atlas, o Oriente
e o Ocidente, centúrias, dinastias,
símbolos, cosmos e cosmogonias
brindam as paredes, mas inutilmente.
Em minha sombra, o oco breu com desvelo
investigo, o báculo indeciso,
eu, que me figurava o paraíso
tendo uma biblioteca por modelo.
Algo, que por certo não se vislumbra
no termo acaso, rege estas coisas;
outro já recebeu em outras nebulosas
tardes os muitos livros e a penumbra.
Ao errar pelas lentas galerias
sinto às vezes com vago horror sagrado
que sou o outro, o morto, habituado
aos mesmos passos e aos mesmos dias.
Qual de nós dois escreve este poema
de uma só sombra e de um plural?
O nome que assina é essencial,
se é indiviso e uno este anátema?
Groussac ou Borges, olho este querido
mundo que se deforma e que se apaga
numa empalidecida cinza vaga
que se parece ao sonho e ao olvido
Jorge LuisP Borges, trad. Josely Vianna Baptista
Publicado em 27 de Dezembro de 2010