(gentileza de Rui A.) Um cão no areal corria presto. Presto correria o cão no areal deserto. Era ao entardecer, e o cão corria presto no areal deserto. Corria em linha recta, presto, presto, pela orla do mar. Pela orla do mar, em linha recta, corria presto, o cão. Era ao entardecer. No areal as águas derramadas nas angústias do mar lambuzavam de espuma as patas automáticas do cão que presto, presto, corria em linha recta pela orla do mar. Sem princípio nem fim, em linha recta, pela orla do mar. Era ao entardecer, na hora espessa, peganhenta e húmida, em que um resto de luz no espasmo da agonia geme nas coisas e empasta-as como goma. No espaço diluído, esfumado e cinzento, corria presto o cão no areal deserto. Corria em linha recta, presto, presto, definindo uma forma movediça que perfurava a névoa e prosseguia pela orla do mar, em linha recta, focinho levantado, olhos estáticos, fixando o breve ponto onde se encontram além de todo o longe as rectas que se dizem paralelas. Alternavam-se as patas na cadência, na cadência ritmada do movimento presto, deixando no areal as marcas do contacto. Presto, presto. Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão no areal deserto. O ritmo sempre igual, a língua pendurada, os olhos como brocas, furadores de distâncias. Em seu último espasmo a luz enrodilhou o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante. Era um suposto cão correndo presto, presto, num suposto areal, realmente deserto, por uma linha recta mais suposta que o areal e o mar Mas presto, presto, sempre presto, presto, ia correndo o cão no areal deserto. António Gedeão