I Ao aterrar na república da consciência o silêncio era tal quando os motores pararam que ouvi um maçarico, bem alto sobre a pista. No balcão da imigração, o funcionário era um velho que puxou de uma carteira do seu saco artesanal, e me mostrou uma fotografia do meu avô. A mulher na alfândega quis que eu declarasse as palavras ancestrais das nossas curas e feitiços contra a mudez e o mau-olhado. Nem um carregador, intérprete ou táxi. Cada um transportava o seu fardo, e os sintomas de insinuante privilégio em breve desapareciam. II Por lá, o nevoeiro é um augúrio temido, mas o relâmpago promete o bem universal, e os pais penduram bebés nas árvores durante as trovoadas. O sal é um mineral precioso. E as conchas levam-se ao ouvido quando nasce ou morre alguém. A base de toda e qualquer tinta e pigmento é a água do mar. O seu símbolo sagrado é um barco estilizado. A vela é uma orelha, o mastro uma caneta inclinada, o casco a forma de uma boca, a quilha um olho aberto. Ao tomarem posse, os dirigentes públicos juram respeitar as leis não escritas, e choram para expiar a presunção de ter um cargo – e para afirmar a sua confiança em que toda a vida nasceu das lágrimas choradas pelo deus dos céus após sonhar que a sua solidão não tinha fim. III Regressei dessa frugal república de mãos a abanar, pois a mulher da alfândega insistiu que a única mercadoria que eu podia trazer era eu próprio. O velho ergueu-se e olhou-me o rosto fixamente e disse ser assim o reconhecimento oficial da minha nacionalidade dupla. Desejou pois ao regressar a casa eu me considerasse representante daquele país, e em seu nome falasse na minha própria língua. As suas embaixadas encontravam-se, disse, por todo o lado, mas actuavam de forma independente, e nenhum embaixador jamais seria dispensado das suas funções. Seamus Heaney, trad. Vasco Graça Moura