Canto da Manhã
Acorda. A cama está mais fria
e os lençóis sujos sobre o chão.
Olha que pelos vidros da varanda
chega o amanhecer,
com sua cor de agasalho de outono
e liga de mulher.
Acorda, pensando vagamente
que o porteiro da noite vos chamou.
E escuta no silêncio: sucedendo-se
no ar, ao longe, ouvem-se enrouquecer
os eléctricos que levam ao trabalho,
É o amanhecer.
As flores ir-se-ão amontoando
cortadas já, pelas tendas das Ramblas,
e gorgearão os pássaros - cabrões -
sobre os plátanos, quando já podem ver
a negra humanidade que se deita
depois do amanhecer.
Lembra-te do quarto em que dormiste.
Enterra a cabeça na almofada,
sentindo ainda a irritação e o frio
que dá o amanhecer
junto ao corpo que nos agradava tanto
e estamos a esquecer,
e pensa que devias levantar-te.
Pensa na tua casa ainda às escuras
onde entrarás para mudar de fato,
e no escritório, com o sono p'ra vencer,
e em muitas outras coisas anunciadas
desde o amanhecer.
Embora a teu lado escutes o sussurro
de outra respiração. Embora tu procures
o pouco de calor entre suas coxas,
meio dormente, que começa a estremecer.
Embora o amor não deixe de ser doce
feito ao amanhecer.
Junto ao corpo que à noite me agradava
assim tão nu, deixa-me acender
a luz para nos beijarmos face a face,
no amanhecer.
Pois eu conheço o dia que me espera,
e não pelo prazer.
Jaime Gil de Biedma, trad. José Bento
Publicado em 24 de Novembro de 2011