Andar, andar, andar é o destino dos amantes que não têm destino como nós nem têm, nem querem casa para viver. Por isso há tantos poemas em que eles vão... Iremos nós também e todos os caminhos nos servirão porque onde tu estiveres comigo não haverá mais ninguém. Iremos e se a noite nos surpreender no meio da jornada - e é muito natural que sim porque sendo longe e incerto o fim que levamos enquanto não chegamos estaremos no meio- se a noite nos surpreender a única coisa que faremos á dar-nos as mãos e caminharemos assim que o que é principal é não nos perdermos um do outro. E se o meu ombro se cansar de receber a tua cabeça -e é muito natural que sim porque é longe e incerto o nosso fim- se o meu ombro se cansar -que também os amantes se cansam às vezes- se o meu ombro se cansar sempre encontraremos uma pedra para atapetar com o musgo dos teus cabelos - que eu não acredito que as pedras sejam duras e desconfio que a dureza está nas suas cabeças-. Sempre encontraremos uma pedra... Era de pedras que faziam o presépio do menino lá na minha terra o presépio onde iam dar todos os caminhos feitos de serradura. E eu, que no tempo era um rapazinho travesso mas dado à meditação, pensava se todos os caminhos acabariam ali ou se cada um não seria a continuação de outro. E às vezes eu -que no tempo era um rapazinho travesso- gostava de fazer às escondidas do cura com serradura um caminho que não passasse pelo presépio do menino. E havia lá, na arca da sacristia da minha terra, um boneco de barro que não era um pastor mas antes parecia um poeta ou um vagabundo ou um doutor moderno desempregado. E era esse desengraçado boneco, muito simpático por sinal, que eu punha a encher todo aquele caminho desviado do presépio do menino. E sempre ele progredia um bocado todos os dias -artes mágicas que eu exercia às escondidas do cura- apesar do ar atarantado que tinha e passava indiferente aos coros mudos dos anjos e dos pastores -lá que eles estavam com a boca aberta, estavam-. E sabes tu, ó meu amor, porque é que ele não se perdia naquele caminho de serradura que não passava pelo menino apesar do ar atarantado que tinha? Era porque a estrela de prata -nós chamávamos prata àquelas folhas de estanho que vêm a enrolar os cigarros e os chocolates- era porque essa estrela de prata estava pregada com um arame num ramo de pinheiro mais alta do que o presépio do menino e alumiava todos os caminhos sem distinção. Assim o meu vagabundo o meu doutor desempregado com mais ou menos um empurrão lá ia chegando à cidade feita de papelão que luzia no alto do monte à sombra do pinheiro de onde pendia aquela estrela de prata. É verdade que no fim ia para a arca como os outros mas não tinha ficado ali durante toda a época do natal a olhar para o presépio com o seu menino e os seus animais como um animal. Geraldes de Carvalho